Os olhos azuis dela brilharam quando anunciou:
- Estou grávida, querido. Você vai ser papai.
O primeiro pensamento dele foi um perplexo “Como isso é possível?”. Ela era infértil: caros tratamentos médicos, dietas especiais e até mesmo simpatias fracassadas haviam comprovado a esterilidade total.
- É um milagre - a futura mãe disse ao notar a surpresa no rosto dele. - Estou tão feliz.
Ele olhou com atenção o corpo da mulher - miúdo, pele imaculadamente alva, cabelos negros e lisos - que em breve assumiria um formato novo. Uma mudança que ele bem sabia não se resumiria ao ventre arrendodado, seios pesados e pernas inchadas.
Sentiu as entranhas encolherem.
- Vou marcar uma consulta para começar o pré-natal o mais cedo possível - ela disse, abraçando-o. O marido tentou retribuir o afeto da melhor maneira possível. Esperava que ela não percebesse como ele tremia, não só pelo choque da notícia, mas também de medo.
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A notícia da gravidez se espalhou entre os colegas de trabalho dele, dois dias depois; a esposa fizera questão que o maior número de pessoas soubesse do acontecimento.
- Mais uma cerveja para o grávido aqui - disse um deles, no happy hour da sexta-feira. Todos na mesa riram, menos o futuro pai. Outro colega prosseguiu:
- A vida nunca mais é a mesma depois do primeiro filho e não falo só das despesas que vão aumentar. É bom se acostumar com a idéia de que você será o responsável pela criança até ela completar os dezoito anos. - Cabeças balançaram em volta da mesa, concordando - Mas parece que você já tá abatido, deixa isso pra quando o bebê chegar e você tiver que trocar as fraldas fedorentas durante a madrugada.
Novos risos. O primeiro confirmou:
- Criança dá um trabalho danado, mas o que importa mesmo é que tenha saúde.
O futuro pai permaneceu calado. O outro colega ficou sério, contemplando o que restava da cerveja no copo.
- É, boa saúde é o que interessa. Minha prima tem uma menina com paralisia cerebral. A coitadinha fez dez anos ontem, entrevada na cama. É muito triste - Entornou a bebida em um gole, antes de continuar - Mas vocês são novos, não tem perigo da criança nascer com síndrome de Down ou algo parecido.
O “grávido” soltou soltou um suspiro; seria um homem de sorte se o bebê nascesse com Down ou paralisia cerebral.
- O que importa mesmo é que o bebê não nasça feio como você! - completou o colega, rindo.
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E assim os dias tornaram-se semanas, as semanas viraram meses e o sexto mês chegou com a futura mãe pesando mais de quinze quilos além do recomendado pelo obstetra. A pele do rosto, antes tão branca, era maculada por manchas escuras e simétricas ao redor dos lábios e bochechas, como as pintas de algum animal exótico. Varizes espalhavam-se de um lado ao outro das pernas, enquanto estrias sulcavam caminhos em coxas, seios e ventre. Este era dividido ao meio por uma mancha estreita e comprida - conhecida pelos médicos como linea nigra - que se estendia do meio do torso até o púbis.
Os exames pedidos mostravam uma gravidez normal, ainda que o ultra-som não conseguisse diagnosticar o sexo devido à posição em que o feto se encontrava. O obstetra assegurou que não havia motivo para preocupação; a futura mamãe devia aproveitar cada momento da gravidez.
Era o que ela fazia. Todos os dias despia-se e alisava com creme hidratante o ventre redondo, observando com curiosidade seu perfil no espelho do banheiro, uma letra B gigante refletindo-se na superfície.
O estômago do marido se revirava ao ver aquela cena. Não só por presenciar a alteração diária naquele corpo, mas porque sabia que seu tempo esgotava-se; havia adiado por muito tempo a difícil decisão que deveria ter tomado tão logo ela lhe contara a novidade.
Mas existia um motivo para tal demora.
Ele amava a esposa.
Amor era um conceito estranho na sua terra natal. E mesmo quando chegara aqui, após fugir e assumir o lugar de um homem órfão, emulando um comportamento aceitável naquela sociedade nova, ele tivera dificuldades em comprender o que era tal emoção.
Até conhecer aquela mulher. Ela lhe mostrou o que era amor e ele acabou por esquecer seu passado turbulento em um lugar tão distante. Em uma noite quente de verão, ela lhe contou sobre o desejo de ser mãe. Sua reação foi um confuso franzir de cenho. Paternidade e maternidade também eram palavras estranhas no lugar de onde viera; para ele, ser pai e mãe resumia-se ao macho copulando com a fêmea e esta parindo, meses depois, uma criatura que se tornaria uma máquina de matar. Macho e fêmea nunca mais veriam a prole pelo resto de suas vidas curtas.
A confusão inicial deu lugar ao pavor quando descobriu o conceito de paternidade naquele verão. Não conseguia explicar para a esposa o perigo que era gerar um descendente seu, que cresceria e sairia da casa.
Um ser que herdaria características físicas e intelectuais dela.
E dele.
Pois filhos nada mais eram que cópias de seus genitores, ele concluiu . Com todas as suas qualidades e defeitos.
Felizmente, a descoberta da infertilidade e sua continuidade, mesmo após tratamentos médicos, revelaram-se um bônus.
O problema, como ele agora descobrira, é que médicos também cometiam erros.
- O bebê chutou! - ela gritou, interrompendo os pensamentos dele. Ela aproximava-se com um sorriso fixo, após mais uma sessão de hidratação. Vestia apenas calcinha branca; os mamilos, agora marrom-escuros, eram como olhos a encará-lo, enquanto o umbigo, no caminho da linea nigra, assemelhava-se a uma boca minúscula, desdentada e de lábios salientes.
Foi quando ele viu a mancha que lhe dividia o torso ondular como uma serpente. Piscou com força para ter certeza do que acontecia e quando abriu as pálpebras, dezenas de outras linhas escuras, finas como veias, proliferaram-se a partir da linea nigra, parecendo as patas de uma centopéia. Em questão de segundos, estenderam-se pelo ventre e, retorcendo-se como tentáculos, desceram até a virilha.
Ele levantou o olhar e viu as aréolas dos mamilos aumentando de tamanho, avançando rapidamente sobre os seios brancos.
Algo viscoso agarrou-lhe a mão.
- Sente como nosso nenê chuta forte - a esposa disse, resquícios do creme hidratante nas palmas lambuzando a mão do marido. Com um safanão, ele afastou-se dela; inventou uma desculpa e saiu correndo dali, controlando-se para não vomitar.
Ela pareceu não se importar com o comportamento dele. Apenas continuou a acariciar o ventre, os cabelos escorridos cobrindo-lhe o rosto, entrevendo-se entre as madeixas negras os lábios retesados em um sorriso.
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O tempo se esgotava, ele concluiu enquanto caminhava no parque localizado a algumas quadras da casa. Ele era também o responsável pela concepção daquela criança, no final das contas; não podia fugir da sua responsabilidade de pai. Era preciso interromper a gravidez de alguma forma.
Pensava em como faria isso quando seu celular tocou. O identificador de chamadas mostrava o número da casa.
Atendeu a ligação e um berro soou no seu ouvido, seguido por uma cacofonia estridente, logo substituída pelo tom monótono de que a ligação caíra.
Ele refez o trajeto para casa em menos de cinco minutos, quando o normal seria o dobro. Um odor repugnante - mistura de sangue, fezes, urina - o atingiu assim que cruzou o umbral da porta. A casa estava em silêncio.
De onde estava, podia ver a esposa estendida no sofá, o rosto voltado para cima, olhos abertos como se verificasse o lustre. Seu braço estava a centímetros do telefone fora do gancho, enquanto suas pernas encontravam-se abertas uma posição inaceitável para uma moça de boa criação.
Era apenas o que ele podia distinguir. O resto daquele corpo miúdo era agora uma polpa brilhante de carne e ossos dilacerados.
Ele tentou não imaginar o desespero da esposa ao sentir garras curvas como foices abrirem caminho pelas suas vísceras e ver um crânio, coberto de pêlos pontiagudos como espinhos, surgir entre suas pernas.
Com os olhos embaçados de lágrimas, notou uma trilha larga de sangue que começava no sofá e seguia até a cozinha. Cautelosamente, acompanhou o rastro viscoso cômodo adentro. A primeira coisa que notou é que a porta que ligava a cozinha ao quintal estava destroçada. A segunda era que a trilha dividia-se em duas.
Pelo visto, o ultra-som não soubera precisar apenas o sexo do feto.
Um berro aflito soou lá fora. Tremendo, o pai correu até o muro que dividia a propriedade. De algum lugar mais distante no bairro veio outro grito desesperado e agudo; poderia ser de mulher ou criança.
Seu rosto se contorceu e ele desabou de joelhos na grama do quintal. Os tremores aumentaram, na mesma proporção da algazarra na vizinhança. Parecia que ele chorava violentamente, mas tal impressão desaparecia quando se escutava suas articulações estalando, enquanto placas ósseas afiadas rasgavam pele e roupas, fileiras de espinhos brotavam do couro cabeludo e dentes eram substituídos por presas enormes.
Janelas sendo despedaçadas, alarmes de casas ativados, veículos explodindo: o caos era total no bairro.
Mas tudo o que ele ouvia era uma voz repetindo-lhe que um pai era responsável por seus filhos.
Com esse pensamento atravessando seu cérebro, ele farejou o ar e correu sob garras curvas atrás de sua nova prole.
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