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terça-feira, 2 de setembro de 2008

Férias no Campo

por Carlos Alberto Barros


O que me aconteceu não desejo a ninguém, nem ao pior de meus inimigos. Pessoas maléficas sofrerem as conseqüências de seus atos, claro, penso que é certo e justo. Mas não isso, não o que passei. Tal punição é injusta até ao mais inescrupuloso dos criminosos, ao mais cruel dos assassinos. E por que comigo? Por que me condenou com tamanha desgraça, meu Deus? Todas, todas mortas! Cada centímetro do meu corpo banhado em sangue. E aquela... aquela... coisa... O que era aquilo? Cristo, o que era aquilo? Lembro-me e começo a tremer.

Estávamos em nossa casa de campo. Eu, minhas filhas gêmeas de seis anos, Samira e Samara, e minha esposa, Sheila – felizes em nosso tradicional descanso de férias. Era o costume passarmos os fins de tarde no lago e, enquanto eu pescava numa extremidade, na outra, minha mulher e as meninas brincavam na água. Tudo agradável, perfeito.

Numa dessas tardes, absorvido por minha introspecção de pescador, pensei ver um vulto passando entre as árvores que ficavam além de onde minha família estava. Tentei forçar a vista para comprovar minha impressão, mas, devido à grande distância, não consegui definir nada que não fosse a vegetação de sempre.

Assim que deixei de lado o que me convenci de ser apenas uma sombra, ouvi um violento grito de criança – era Samira. O susto me fez pular e, acidentalmente, larguei a vara de pesca à mercê da água. Corri depressa. Sheila, nervosa, já carregava Samira no colo, indo em direção ao carro. Samara vinha atrás, chorando. Trouxe-a aos meus braços e segui minha esposa que, com os olhos vermelhos, disse-me que a menina tinha sido mordida por uma aranha.

Chegamos ao hospital desesperados. Minha filha tremia e eu esbravejava, pedindo atendimento. No fim, tudo correu bem. O médico diagnosticou uma intoxicação leve, dizendo que, no máximo, geraria uma febre. Depois dos medicamentos e algumas horas de observação, fomos liberados.

No retorno para casa, Sheila dirigia em silêncio. Eu ninava Samira, enquanto Samara cochilava. Já quase chegando, um novo susto. De repente, e numa velocidade inaceitável à mente humana, um imenso animal cruzou a frente do carro, o que nos fez parar bruscamente. O medo tomou conta de mim, mas tentei escondê-lo para não assustar ainda mais minha mulher. Depois de várias hipóteses levantadas, já que o escuro da noite não nos permitiu ter uma visão clara, concordamos que aquilo tinha sido um cavalo fugindo de alguma fazenda, ignorando completamente o fato de que nenhum animal podia ser tão veloz.

Por ser já muito tarde e, como não queríamos pegar a rodovia na madrugada, decidimos ficar ali naquela última noite antes de voltarmos para a cidade. Saímos do carro, eu e minha esposa, cada qual com uma das meninas nos braços. Inconscientemente, combinamos um passo apertado em direção à porta de entrada da casa. Tomei a frente para abrir a fechadura. Assim que entrei e acendi a luz, tive a impressão de sentir um vento passando às minhas costas. Virei-me e vi que não havia nada nem ninguém, nem mesmo Sheila. Entrei em pânico. Olhei em frente à casa, e não avistei Sheila. Comecei a gritar por seu nome e o de Samara, sem obter resposta. Em meu colo, Samira acordou agitada, perguntando por sua mãe e sua irmã. Tentei acalmá-la, enquanto contornava a casa à procura de alguém ou alguma coisa. Sem sucesso e apavorado, resolvi ligar para a polícia.

Após desligar o telefone, obtendo a promessa da chegada de uma viatura o mais rápido possível, presenciei uma das piores cenas que já pude ver. Emergindo da escuridão externa, um corpo desmembrado entrou voando pela porta e atravessou o ar velozmente, até se estraçalhar na cristaleira do lado oposto da sala. A imagem era terrível: uma pessoa... o corpo mutilado... sangue... muito sangue... Meu Deus, até hoje, sinto meu coração parar quando lembro... Foi como ver o inferno. Ali, na minha frente, estava o cadáver da pessoa que eu mais amava. Cristo, como pôde deixar acontecer isso com a minha Sheila? Tão bela... transformada num corpo dilacerado e sem vida.

Só consegui sair do estado de choque com o grito de Samira. Foi tão forte que pude sentir minha alma se arrepiando. Num impulso repentino, larguei a menina no sofá e corri até Sheila. Abracei-a com força. Senti todo aquele sangue, ainda quente, ser passado para o meu corpo. Era o último ato de amor da minha adorada. Enquanto Samira continuava gritando, eu chorava em terror, inconsolável pela morte de Sheila e imaginando onde minha outra filha poderia estar.

Foi com grande sacrifício que larguei o corpo de minha esposa. Só o consegui pelos chamados de Samira. Corri para trancar a porta e fui até a menina. “Calma, filha, vai dar tudo certo”, disse – muito mais para mim mesmo do que para ela – e recomendei que ficasse quietinha no sofá, que não saísse dali por nada. Fui até o armário dos fundos para pegar minha espingarda. Enquanto eu a carregava, ouvi a voz de Samara vindo de fora. Meu coração disparou, ela estava viva! “Samara, eu abro a porta para você”, escutei Samira dizendo. “Não, filha, deixa que o papai abre”, ordenei com um grito. E correndo entre os cômodos, em direção à entrada, ouvi o som do ferrolho se abrindo. “Menina teimosa”, falei comigo mesmo. As vozes cessaram e um sinistro silêncio dominou o ar.

Deus, o que vi ali e o que se sucedeu pagou os pecados não só desta minha vida miserável como os de tantas outras que eu possa ter. Eram só crianças! Como pôde deixar isso acontecer? Como pôde abandonar duas meninas inocentes? Maldito! Um Deus assim não me vale de nada! Por quê?

Vi Samira parada na porta, olhando para fora, paralisada. Pouco além dela, emergindo da escuridão, vi dois pontos luminosos. Na medida em que se aproximavam, transformavam-se em grandes e ferozes olhos. Aos poucos, fui identificando a silhueta que os carregava. Por Cristo, o que era aquilo? Um monstro! E só o que me vem à mente. Um monstro demoníaco. Sua cabeça ostentava tantos chifres que não pude contá-los. Também tinha uma espécie de focinho muito saliente, com presas enormes à mostra e um líquido viscoso escorrendo. O resto de seu corpo era uma grande massa escura de pêlos, lembrando muito um gorila, porém, com um detalhe terrivelmente macabro – havia, na altura do estômago, uma abertura cheia de dentes ensangüentados, como uma espécie de segunda boca. Mas, o pior era o que carregava entre seus dentes... Horrível! A visão mais diabólica que possa existir não se compara àquilo. Minha filhinha... minha pequena Samara, com metade de seu corpinho engolido. Seu tronco, pendurado naquela mandíbula nojenta, era como uma boneca quebrada servindo de brinquedo ao demônio. Pela minha alma! Queria que fosse eu ao invés dela. Minha pequena... ali... morta.

De repente, me dei conta que Samira continuava no mesmo lugar. Ela não se movia, não falava, não fazia nada e... pobrezinha... via tudo que eu via! A própria irmã... gêmea... devorada na sua frente! Eu precisava salvá-la... Ainda havia esperança... Eu precisava salvá-la! “Samira, Samira”, chamei-a, baixinho, tentando não demonstrar ameaça à fera. A menina continuava parada. Não tive escolha, arrisquei: chamei mais alto. A resposta veio da maneira que eu menos desejava. Samira saiu de seu transe com um grito agudo, ensurdecedor. “Não!”, falei, mas já era tarde. A besta pulou sobre a menina, calando sua voz para sempre. Meu Deus... feita em pedaços... uma criança... Só então desisti. Dei-me conta de que tudo estava acabado. Todas, todas mortas! Ergui a espingarda e comecei a atirar, urrando, descontrolado e em total desespero. Inconscientemente, dava passos para trás, até que caí sobre o corpo de minha esposa, envolto nos estilhaços da cristaleira. Todo cortado e num transe enlouquecido, continuei apertando o gatilho, mesmo com a arma já sem balas.

Não sei se acertei meu alvo, mas o demônio continuava em pé, terminando de devorar minhas meninas. Maldito! Enquanto via aquilo, aos prantos, totalmente vencido e sem forças para ainda tentar algo, ouvi um barulho de carro. Eu estava desnorteado, delirando... “Socorro! Salve minhas filhas!”, gritei. Elas já mortas e eu lá... delirando. Nada mais fazia sentido, e não restava nem uma bala para que eu me matasse ali mesmo. Minha vida acabou naquele instante.

O som do carro encerrou-se com uma freada violenta. As luzes do farol alto invadiram a casa, incidindo sobre a fera. Não sei exatamente por que: se pelo barulho, se pelas luzes externas, se por um milagre ou por vontade própria. Mas, o fato é que, num piscar de olhos, o monstro cruzou a porta e ganhou a mata, sumindo da minha visão para não mais retornar. Pelo menos, não até agora... Que Deus me mate antes de acontecer novamente. Estremeço só de pensar.

Quando o policial viu meu estado, sua primeira atitude foi solicitar reforços. Em pouco tempo a casa estava rodeada de viaturas. Consigo lembrar bem do barulho e das luzes. Depois disso, apaguei.

Dia seguinte, acordei no hospital. Apesar de não estar morto, minha vida acabara. Minha família... Deus, minha família... O que eu faria sem ela? Como continuar vivendo?

Soube que fizeram diversas buscas para encontrar a fera, porém, ninguém mais a viu. Hoje, moro com alguns parentes. Após anos e anos de tratamentos mentais, dizem que fiquei bom, que estou curado. De minha parte, tenho uma única certeza: você nunca mais será o mesmo depois de um encontro com o demônio.

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2 comentários:

Gostei do conto. No começo pensei se tratar de uma crise psicótica do personagem, depois descobri um bom conto de terror

Obrigado pelo comentário, Angela.

Que bom que gostou do conto. Não é minha especialidade, mas foi uma tentativa até que bem acertada.

O conto surgiu de uma proposta da Oficina de Escritores e Teoria Literária. Creio que foi até que bem...

Valeu pelo apoio!

Forte abraço!

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