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segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Seleção Brasileira

Marcelo Spalding


1
Kléber, o goleiro. Defende-se como pode das investidas do Argentino. Desde que pediu a grana pra pagar o pó – pediu o pó porque não conseguia pagar uma grana –, vive a se defender. Fugindo, fingindo, roubando. Não pode abandonar morro e família, por isso acaba voltando e apanhando e pagando um pouco. Dessa vez era um ultimato. Kléber, o goleiro, tinha que pagar. El Argentino invadiu a casa, quatro homens armados ao redor dele. Não tenho um pila, hermano, pode revirar tudo pra ver. O Argentino olhou, olhou a casa sem mobília, as paredes sujas e a mulher grávida, grávida mais uma vez. Procurou um revólver que fosse, um maço de cigarros. Tu es un mierda, grita, e o outro tremendo no canto da parede, barbudo, fedido. Eu disse que não tinha nada, hermano. Atirou sem dó. Kléber, reflexo rápido, ainda tentou se defender. Morreu com um buraco na mão.


2
Juarez, ou melhor, Doutor Juarez Fonseca, o lateral direito, aquele que defende pela direita e sempre pela direita. Nasceu em 1964, aprendeu a ler em sessenta e nove e muito cedo decidiu-se pelo quartel. Ordens, horários, compromisso. Doutor virou e causas nobres defende. Com a veemência dos justos. Defende proprietários de terras, jornais, bancos, mercados, lojas, governos, ilhas, mansões, BMWs. Agora está em dúvida o Doutor Juarez: foi mucha plata o que el Argentino ofereceu.


3
Gente como o João não devia andar armada. Homenzarrão, alto e forte como só um zagueiro central pode ser. Um dia chegou em casa e a mulher estava sobre uma poça. Poça vermelha de sangue. Nunca mais foi o mesmo, sabia que naquele morro só morria quem el Argentino deixava. Pegou a arma – eu avisei que gente assim não devia andar armada –, e subiu bufando até la casilla rosada. Os olhos turvos de raiva, a cabeça devagar de raiva, o corpo explodindo de raiva. Chutou a porta e esvaziou o cartucho, oito tiros. Matou abuela e tía.


4
Carlos é o quarto zagueiro, o que dá cobertura para o zagueiro central. Levou a sério demais essa história de cobertura. Apaixonou-se por João e ao mesmo tempo, por óbvio, odiou a loira dele. Conhecia bem o João, seus um e noventa de puro músculo, sua pele negra de um negro chocolate. Sabia também que o negão mataria ele se soubesse dos olhares, dos suspiros no vestiário. Mas Carlos é zagueiro de cobertura, não desiste nunca. Yo puedo ajudarte, ofereceu el Argentino em troca duns trocados. Foi mais fácil pagar do que sujar as mãos de sangue.


5
Émerson, por orientações táticas, jogava exatamente entre a defesa esquerda e a direita, protegendo ambas dos avanços dos adversários. Homem correto, íntegro, religioso, funcionário modelo na fábrica, pai de um menino e uma menina. Amava sua esposa, nunca traiu, nunca desconfiou dela, nunca forçou uma transa. Seria um legítimo representante da classe média não morasse no morro. E não fosse ele vizinho de la casilla rosada del Argentino. E não fosse sua casa confundida com la casilla rosada del Argentino. Morreu de bala de polícia sem ter tempo de pagar a última prestação da televisão.


6
Jerônimo, codinome Fonseca, irmão caçula do Juarez, nascido no dia exato do AI-5. É o lateral esquerdo e, pelo óbvio, defende sempre pela esquerda. Não pôde ser advogado nem administrador nem contador e ganhar muito dinheiro, como sonhava a mãe e insistia o irmão. Preferiu o jornalismo. E ali travou batalhas primeiro contra os professores, depois contra os chefes de redação e mais tarde contra as mulheres e os amigos e os políticos. Espremia-se à esquerda do mundo. Odiava carros, estrangeirismos, lanchonetes fastifud, internéti, roliúde, televisão, detestava todo lixo produzido pela tal indústria cultural, livros, filmes, gibis, bostas, tudo bosta. Largou também os Sem Terra e a União dos Estudantes. Procura causas novas, talvez uma guerrilha armada em pleno centro urbano. Já pensava à sério na proposta del Argentino.


7
Caio é pequeno e veloz, um legítimo segundo atacante, ou atacante de velocidade. Ponteiro, para os saudosistas. Investe na área adversária surpreendendo os zagueiros, servindo o centroavante e às vezes ele mesmo fazendo uns golzinhos. Caio ganhou muito dinheiro com isso. E investe tudo em ações, veloz é para comprar e vender, aposta nas opções, lança mão de debêntures, tanto arrisca no curto prazo que já dobrara seu capital. Mas precisava mais, e um dia Caio perdeu. Perdeu dinheiros e razão e mulher. Perdeu opções e poder e BMW. Não ouviu o Kléber, esse dizia para não se meter com o submundo, ainda mais con el hombre. Mas com rapidez se infiltrou na área inimiga, e com rapidez perdeu tudo. Sua última aposta foi um suicídio sem surpresas.


8
Patrício é o segundo volante, sempre à serviço do craque do time, para quem deve entregar a bola depois de desarmar. Trabalha na MR Comunicações desde os catorze, quando o pai sumiu e a mãe enlouqueceu. Cresceu na empresa, funcionário modelo por dois anos seguidos, jornada de catorze horas na maioria dos dias da semana e seis horas no Sábado. Nunca ficou doente. Nunca reclamou. Dez anos de casa. Teria um sido um coitado feliz. Mas um dia descobriu no que tinha se tornado su padre e foi morar en la casilla rosada.


9
Wilson Holmer é o centroavante, atacante mais enfiado, homem de finalização, famoso por todos e desejado por todas. Quando acerta. Estava num dia ruim. Chegou na televisão vinte minutos depois, pediu café, trouxeram com adoçante, atirou no chão café, bandeja, script, paciência. Voltaram com um café fresco, e ele lá escolhendo as notícias para aquela noite. Vibrava com cada ponto na audiência como se fosse o miléssimo gol. E de dia já estava lendo impressos do mundo todo, envolto por um palacete bem decorado. Mas aquele era um dia ruim. O jornal abria com notícia sobre um acidente: policial mata desempregado por engano. O apresentador assiste de sua bancada conversando com a colega. Faltam quinze segundos. O áudio do estúdio voltaria quando faltassem cinco. Erro do operador, erro grave: voltou faltando oito. E o país todo ouviu Holmer dizer: tem mais é que matar esses vagabundos.


10
Marcelo Reis é um craque, grande armador, responsável por lucros estupendos tanto da agência onde trabalha quanto dos clientes que nele confiam. Formado num colégio de padres e sem interesse algum em qualquer faculdade, abriu o negócio confiando em seu talento nato: MR Comunicações. Hoje atende proprietários de terras, jornais, bancos, mercados, lojas, governos, ilhas, mansões, BMWs. Mas nunca tinha aparecido um cliente como esse: a Polícia Civil. Precisamos melhorar nossa imagem nos morros, dizia o comandante. A população não acredita mais em nós e, quer saber, nem eu, mas disseram que você faz milagre. E fez. Marcelo Reis, craque, armador, descobriu el Argentino y su carisma, el Argentino y su gana, el Argentino e o temor que causava em toda cidade e diagnosticou pra polícia: matem esse cara numa batalha difícil, ao vivo. Se possível sacrifiquem dois ou três homens seus no tiroteio. Mas façam barulho.


11
Ricardo é o elo entre o ataque e o resto. Por vezes um pouco à frente do dez, mas na maioria das vezes ao seu lado e mesmo atrás. Homem versátil no campo e na vida. Na vida é policial civil por profissão, segurança de boate para ganhar dinheiro. Fatura bem numa noite indicando el Argentino. Mas um dia levou calote. Logo ele, o que fazia a ligação entre o submundo do adversário das leis e a própria lei, logo ele levou calote. Tinha que mostrar quem manda. Aproveitou que naquele dia estaria fardado. Convenceu o colega e foram de viatura. Subiram o morro sem alarde. Chegando em la casilla, pediram pra falar com el Argentino. Mudou-se para a casa ao lado, avisou uma mulher. Pulou a cerca, arma destravada, pronta. A intenção era dar um tiro na perna do caloteiro filho da puta. Tocou uma, duas vezes. Émerson, cansado do jogo, se levantou devagar para abrir. Ricardo não gosta de esperar. Grita que é a polícia, conta mais três, quatro, cinco. No dia seguinte, os jornais estampam: policial mata desempregado por engano.

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