Vira e mexe surge algum escritor com a inovadora de idéia de:
“Tenho de revolucionar a Literatura”.
Antes de tudo, tentemos compreender do que se trata esta ânsia por mudanças e porque a tradição incomoda tanto.
A tradição é uma convenção, geralmente arbitrária, que determina quais foram os grandes expoentes de determinada área de atuação, e em quais épocas. Ela se constrói ao vislumbrar o passado, constatando em como aquelas produções se relacionaram com o mundo, e como influenciaram seus contemporâneos.
Os grandes mestres, ou grandes obras, dialogam com suas próprias épocas, abrindo sentido para seus receptores, mas, ao mesmo tempo, transcendendo seu tempo e atingindo também a um receptor póstero.
Machado de Assis percebe bem esta relação, quando afirma que é o universal que permite uma obra literária ultrapassar a si mesma e ao próprio autor, dotando-a de longevidade, de um sentido perene.
A tradição é a moldura da produção cultural, a linha-mestra do que, em tese, representou o ápice dum período.
O problema da tradição é quando, ao invés de referência ou inspiração, ela se torna uma imposição às gerações vindouras, que têm de se pautar por ela, repeti-la, imitá-la.
O clamor por “revolução”, ou “renovação” surge desta asfixia da tradição, imposta, não pela tradição, mas pelos receptores de Arte, ou por seus representantes.
A Revolução como libertação
Neste sentido, os revolucionários são aquelas pessoas que precisam se libertar das amarras do que já está gasto, do que já caiu em desuso. É através do abandono ao convencional que eles se nutrem, para poder dar a gênese ao novo.
Contudo, este tipo de revolução decorre de uma negação positiva do passado, um repúdio às normas conhecidas. O revolucionário não destrói aquilo que não conhece, ele se desapega do que o oprimia. É uma luta contra o conhecido, contra o excessivamente conhecido.
A Revolução como ignorância
Por outro lado, há uma outra estirpe de revolucionários, que renega o passado apenas pelo fato de ser passado, sem compreensão, sem aquela asfixia essencial.
Desconhecem a tradição — preguiça, ou posicionamento voluntário —, e se opõem a ela cegamente. Este tipo de revolucionário é o mesmo que, vez ou outra, é pego macaqueando, inconscientemente, a tradição, pois, em seu desconhecimento, não sabe a que se opõe. É o herói que luta contra a própria sombra, por não saber quem são os seus inimigos.
A Revolução como processo histórico
Apesar de o anseio por mudanças ser individual, e brotar de indivíduos, a necessidade de revolução é histórica.
Heidegger aponta com propriedade a complexidade da formação de sentidos, quando uma camada de sentido se sobrepõe às demais, afastando-nos de um conhecimento originário do mundo.
A tradição serve como uma espécie de filtro para nossa compreensão de Arte; todos nossos conceitos se fundam no já-feito, e este já-feito molda o que está-para-vir.
Mas, em certos momentos históricos, em certas conjunturas, novas relações se estabelecem, as quais, se não invalidam totalmente, pelo menos comprometem as bases dos saberes anteriores. Nestes momentos de cisão, o que vale para uma época deixa de valer para a seguinte, e a manutenção da tradição torna-se apenas um hábito decadente.
É neste instante que os indivíduos, coletivamente, mas através de suas próprias expressões individuais, iniciam o refluxo e estabelecem as novas bases, que, por sua vez, tornar-se-ão a tradição no futuro.
Uma revolução de um só homem é um “golpe de Estado”. A verdadeira revolução só ocorre em conjunto, quando o passado não mais basta, não supre mais as necessidades, não mais responde satisfatoriamente as questões.
O Reacionário
Existem pelo menos dois tipos de reacionários: o que teme a mudança e reage à ela; e o que tenta compreender o passado, para poder compreender a mudança.
O primeiro tipo é avesso a qualquer transformação. É o idólatra do passado, dos grandes mestres, incapaz de se voltar para o seu tempo e identificar as marcas da transformação.
O segundo tipo é o que se sujeita ao passado, aprende com ele, descobre o que há de melhor da tradição, dialoga com os mestres pretéritos, e, quando chega a hora propícia, despe-se de seu reacionarismo e aproveita seu conhecimento para ajudá-lo em sua metamorfose. Este reacionário entende que ação-reação só faz sentido nesta dicotomia, que, se estes pólos forem suprimidos, qualquer movimento deixa de existir, estaríamos abandonados a uma insossa neutralidade.
Este tipo de reacionário é quem prepara as bases sólidas para uma verdadeira transformação, pois tem a clareza do que deve ser abandonado, do que pode ser mantido, e do que deve ser renovado.
A Revolução: um grande clichê
No fundo, a própria luta forçada para se estar na linha de frente, para ser a vanguarda de uma geração revolucionária, não passa de um grande clichê, de um baita lugar-comum.
Este revolucionário, não raro um artista sem obra, um procrastinador com “ótimas” idéias, mas nenhuma realização concreta, acaba sendo o arauto da repetição, do tradicional. Pois todas as épocas possuem seus revolucionários de mentirinha, que surgiram prometendo grandes mudanças, mas que desapareceram, dragados pela tradição contra qual combatiam.
Nenhuma injustiça, possivelmente, apenas um processo de seleção natural, não muito diferente da biológica.
Conclusão
Quase todo escritor vê em si mesmo o germe da mudança, o ponto de ruptura de uma época para outra. Há um prazer em se imaginar num limiar, onde as relações pretéritas serão abandonadas e onde ele, idealizador com grandes reformas, estará na aurora de novos tempos.
Alguns poucos realmente acertam; alguns são, de fato, tão geniais quanto se imaginam, capazes de concretizar, ou acompanhar, as mudanças que vislumbraram.
Mas a maioria está absorta por um delírio de auto-emulação, revolucionários apenas da boca pra fora.
E a tradição, em sua implacável arbitrariedade, se lembrará apenas dos primeiros.
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