O SENHOR JOSÉ DE ANDRADE era contramestre de uma oficina do Estado, situada nos subúrbios.
Era ele o único homem da casa, pois, do seu casamento com dona Conceição, só lhe nasceram filhas, que eram quatro: Vivi, Loló, Ceci e Lili.
Era homem morigerado, sem vícios, exemplar chefe de família, que ele governava com acerto e honestidade. Só tinha um fraco: jogar no bicho; mas, isso mesmo, não era diariamente; fazia-o de longe em longe.
Um belo dia, ganhou na centena. Adquiriu, por quinhentos mil-réis, um terreno, em Inhaúma; comprou algumas peças de uso doméstico e distribuiu cem mil-réis, igualmente, entre a mulher e as quatro filhas. Dona Conceição tinha visto nas mãos do Benjamim, vendedor ambulante, por prestações, uma saia de casimira muito boa. Quis comprá-la, mas não tinha de mão a quantia que devia dar de sinal. Entretanto, agora, com aqueles vinte mil-réis, estava de posse dela.
Nem de propósito! No dia seguinte, Benjamim passa, e ela adquire a saia, dando o sinal e obrigando-se a pagar doze mil-réis, mensalmente.
Vivi também tinha visto nas mãos de Sárak uns borzeguins de cano alto, de pelica, muito bons; mas não tivera o dinheiro na ocasião, para fazer o primeiro adiantamento.
Esperou Sárak e adquiriu dois pares: um preto e outro amarelo.
Estava no dever de pagar doze mil-réis por mês, que ela esperava obter com o produto de suas costuras.
Loló, essa gostava de jóias e vivia sonhando com um relogiozinho-pulseira que o Nicolau lhe quisera vender a prestações de quinze mil-réis. Avisou a sua amiga Eurídice que, quando ele lhe fosse cobrar, o mandasse falar com ela, Loló.
Assim foi feito; e, no domingo seguinte, ia ao cinema com o adorno cobiçado que logo se desarranjou.
Pagaria as prestações com o dinheiro que os bordados lhe dariam.
Ceci e Lili não eram lá muito inclinadas para esse negócio de prestações; mas o exemplo das irmãs animou-as.
Ceci tinha uma linda saia de voile azul-marinho, que o papai lhe dera no mês passado, quando fizera dezessete anos; mas não gostava da blusa que era branca. Queria uma creme; e, justamente, o Ivã, um ambulante de prestações, que lhe não deixava a porta, tinha uma em condições, e magnífica. Ficou com ela; e a sua contribuição era modesta: seis mil-réis mensais, quantia ínfima que o pai lhe daria certamente.
Lili, a mais moça, não tendo ainda dezesseis anos, parecia resistir à atração, à fascinação de obter um adorno ou uma peça de vestuário, por meio de quotas mensais.
Guardou, durante uma semana, os vinte mil-réis intactos; mas apareceu-lhe no portão, pela primeira vez, um vendedor ambulante de jóias, a prestações; e ela, dando-lhe o dinheiro, que tinha reservado, fez dona de umas “africanas” com a promessa de pagar dez mil-réis por mês. Chama-se o ambulante José Síki.
Ela ajudava a mais velha, a Vivi, nas costuras e, por isso, lhe dava esta uma parte do que ganhava.
O mês correu e não bem para os cálculos das moças, pois Vivi adoeceu e não pudera trabalhar na “Singer”. A moléstia da mais velha refletiu-se em toda a economia da família, pois houve aumento de despesas com medicamentos, dieta, etc. dona Conceição não pôde fazer economias nas compras, pois tinha que atender ao acréscimo de despesa com o aleitamento de Vivi; à segunda, Loló, tendo que cuidar da irmã, não foi permitido bordar; ao pai, devido aos dispêndios com o tratamento da mais velha, não foi dado oferecer qualquer dinheiro à sua filha de estimação, Ceci; e, finalmente, não tendo Vivi trabalhado, Lili não ganhava a gorjeta que a primogênita lhe dava.
No começo do mês seguinte, um atrás do outro, lá batiam à porta, Benjamim, Sárak, Nicolau, Ivã, José Síki, a cobrar as prestações de dona Conceição, de Vivi, de Loló, de Ceci e de Lili.
Desculparam-se do melhor modo e os homens se foram resignadamente.
No mês que se seguiu, as coisas não correram tão bem como elas esperavam.
Fizeram alguma coisa, mas insuficiente para pagar aos russos das prestações.
Não ficaram estes contentes e procuraram indagar quem era o dono da casa. José de Andrade não sabia da história de prestações e ficou espantado quando eles o procuraram, para a cobrança.
No começo pensou que era só um; mas quando viu que eram cinco, e que as prestações alcançavam a respeitável soma de cinqüenta e nove mil-réis – o pobre homem quase ficou louco.
Ainda quis restituir os objetos; mas as peças de vestuário estavam usadas, o relógio desarranjado e, até, as “africanas” precisavam de consertos no fecho.
Não houve remédio senão pagar, e, ainda hoje, quando o modesto operário encontra um homem de prestações, diz com os seus botões:
– Não sei como a polícia deixa essa gente andar solta... Só se lembra de perseguir o “bicho” que é coisa inocente.
Fonte: Domínio Público
Biografia
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu a 13 de maio de 1881 no Rio de Janeiro. Filho de uma escrava com um português, cursou as primeiras letras em Niterói e depois transferiu-se para o Colégio Pedro II. Em 1897 ingressou no curso de engenharia da Escola Politécnica. Em 1902 abandonou o curso para assumir a chefia e o sustento da família, devido ao enlouquecimento do pai, e empregou-se como amanuense na Secretaria da Guerra.
Apesar do emprego público e das várias colaborações no jornais da época lhe darem uma certa estabilidade financeira, Lima Barreto começou a entregar-se ao álcool e a ter profundas crises de depressão. Tudo isso causado pelo preconceito racial.
No ano de 1909 fez sua estréia como escritor com o lançamento da obra "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" publicada em Portugal. Nessa época, dedicou-se à leitura dos grandes nomes da literatura mundial, dos escritores realistas europeus de seu tempo, tendo sido dos poucos escritores brasileiros a tomar conhecimento e a ler os romancistas russos.
Em 1910, fez parte do júri no julgamento dos participantes do episódio chamado "Primavera de sangue", condenando os militares no assassinato de um estudante, sendo por isso preterido, daí para frente, nas promoções na Secretaria da Guerra. Em 1911 escreveu o romance "Triste fim de Policarpo Quaresma", publicado em folhetins no Jornal do Comércio.
Apesar do aparente sucesso literário, Lima Barreto não consegue afastar-se do álcool é internado por duas vezes entre os anos de 1914 e 1919. A partir de 1916 começou a militar a favor da plataforma anarquista. Em 1917 publicou um manifesto socialista, que exaltava a Revolução Russa. No ano seguinte, doente e muito fraco, foi aposentado do serviço público e em 1º de novembro de 1922 veio a falecer, vítima de um colapso cardíaco.
Lima Barreto é considerado um autor Pré-modernista por causa da forma com que encara os verdadeiros problemas do Brasil. Dessa forma, critica o nacionalismo ufanista surgido no final do séc. XIX e início do XX. Apesar de Lima Barreto não ter sido reconhecido, em seu tempo, como um grande escritor, é inegável que pelo menos o romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma" figure entre as obras primas da nossa literatura.
Fonte: Mundo Cultural
Apesar do emprego público e das várias colaborações no jornais da época lhe darem uma certa estabilidade financeira, Lima Barreto começou a entregar-se ao álcool e a ter profundas crises de depressão. Tudo isso causado pelo preconceito racial.
No ano de 1909 fez sua estréia como escritor com o lançamento da obra "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" publicada em Portugal. Nessa época, dedicou-se à leitura dos grandes nomes da literatura mundial, dos escritores realistas europeus de seu tempo, tendo sido dos poucos escritores brasileiros a tomar conhecimento e a ler os romancistas russos.
Em 1910, fez parte do júri no julgamento dos participantes do episódio chamado "Primavera de sangue", condenando os militares no assassinato de um estudante, sendo por isso preterido, daí para frente, nas promoções na Secretaria da Guerra. Em 1911 escreveu o romance "Triste fim de Policarpo Quaresma", publicado em folhetins no Jornal do Comércio.
Apesar do aparente sucesso literário, Lima Barreto não consegue afastar-se do álcool é internado por duas vezes entre os anos de 1914 e 1919. A partir de 1916 começou a militar a favor da plataforma anarquista. Em 1917 publicou um manifesto socialista, que exaltava a Revolução Russa. No ano seguinte, doente e muito fraco, foi aposentado do serviço público e em 1º de novembro de 1922 veio a falecer, vítima de um colapso cardíaco.
Lima Barreto é considerado um autor Pré-modernista por causa da forma com que encara os verdadeiros problemas do Brasil. Dessa forma, critica o nacionalismo ufanista surgido no final do séc. XIX e início do XX. Apesar de Lima Barreto não ter sido reconhecido, em seu tempo, como um grande escritor, é inegável que pelo menos o romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma" figure entre as obras primas da nossa literatura.
Fonte: Mundo Cultural
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