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domingo, 13 de abril de 2008

O jogo

Eu sei que o meu vizinho da frente é um tipo estranho. Habita aquelas duas pequenas assoalhadas escuras há mais de vinte anos e nunca ninguém lhe conheceu um emprego ou qualquer outro tipo de ocupação produtiva. Não tem mulher. Não se lhe conhece qualquer família. Nunca se ouviu sair de lá o choro ou o riso de uma criança.

Nunca comentei com ninguém sobre ele e nossa amizade. Nem com meus amigos, nem com meu chefe ou colegas lá da repartição. Nem no restaurante que frequento praticamente todos os dias. Nem mesmo com a minha família – meus pais velhinhos lá na província que visito fim-de-semana sim fim-de-semana não.

Não sei como foi... entre nós estabeleceu-se aquele ritual. Todos os dias quando chego, pego Faruk pela trela e o levo a passear um pouco. Paro aqui e ali, bebo uma ou duas bicas, um ou dois whisky, ponho a conversa em dia e depois...

Depois lá estou eu tocando a sua porta. Ele se apressa a abri-la sem uma única palavra. Conduz-me até à pequena salinha e ficamos os dois a olhar para aquele rectângulo mágico – o Jogo.
Seguem-se duas ou três horas em que o tempo se esvai sendo substituído pelos lances rápidos. Meu vizinho é muito bom jogador. Esperto, astuto. Quase diria possuidor de uma inteligência extra-terrestre. Não que eu acredite em extra-terrestres. Sempre fui uma pessoa muito céptica.
Ano passado apareceu por lá o Tiago. O miúdo tinha acabado de sair da escola e ia me ajudar com os processos de sector imobiliário. Logo me veio com teorias de conspiração. Os extra-terrestres para aqui, os homens verdes para ali. Se eu sabia que muitas personagens ilustres tinham sido na verdade...extra-terrestres. Se eu sabia que eles tinham estado na génese de toda a vida no nosso planeta. Se eu sabia que hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo estávamos sendo observados, discutidos, estudados. Um dia o miúdo não apareceu. Ninguém voltou a ouvir falar dele. O mais certo é ter arranjado um biscate mais bem remunerado ou mais perto de casa.

O meu amigo do apartamento da frente é na verdade uma pessoa pouco comum. Nunca conheci ninguém tão reservado. Não se interessa por política nem novela. Não tem rádio, aparelhagem ou televisão. Não reage se lhe falo do Glorioso. Se comento sobre mulher ouço uma resposta muda. Nem um gesto, nem um pequeno sinal de entusiasmo ou de excitação. E no entanto...

Todos os dias ele me espera...para jogar. Todos os dias o jogo tem novas nuances, novos desafios. Às vezes ganho – desconfio que ele me deixa vencer, faz de propósito, deve ter receio que eu perca o interesse por nosso vício comum. Por vezes me sinto estudado, analisado, perscrutado até ao mais íntimo através dos desafios daquele jogo infinito e empolgante. Ele joga em silêncio. Concentração absoluta. Não bebe. Não come. Apenas através de sinais lhe adivinho a alegria da vitória, o elogio de uma boa jogada ou a desilusão da derrota.

Hoje cheguei a tempo e horas e me esperou ao invés dele a porta entreaberta. O vazio. No centro da sala jaz a pequena mesa descolorida, desprovida do rectângulo mágico alvo das nossas atenções e esforços diários. Dele e do jogo nem o mais pequeno sinal. Nem o mais pequeno indício. Como se aquele pequeno apartamento nunca tivesse sido habitado!Eu sei que meu vizinho da frente é um tipo estranho. Muito estranho mesmo. Mas tenho saudade de seus olhos grandes e cinzentos em sua carapaça verde. De sua concentração silenciosa. De ver seus tentáculos manipulando habilmente as peças... esteja onde estiver.

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1 comentários:

Muito bom, José!

E o personagem ainda tem coragem de dizer que não acredita em extraterrestres!

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