A viagem de quinze dias ao Egito suscitou a Augusto Salado preocupações com a segurança da casa que não costumava ter. Talvez fosse a distância, talvez o muito tempo fora, talvez um certo sentimento de superstição com civilizações com poderes insuspeitos.
Puxando um pouco pela cabeça, resolveu organizar um sistema de simulação de presença, para enganar os ladrões, com a ajuda de simples aparelhos automáticos: um candeeiro de pé alto na sala, ligado a um temporizador, que acenderia entre as 20:15 e as 00:40 h, daria a entender que havia rotinas quotidianas em casa, embora a persiana estivesse sempre meio aberta; ligou ainda outro candeeiro de parede, no hall de entrada, a um sensor de movimento, apontado para a frincha que a porta tinha, que acenderia ― testou ― se alguém se aproximasse. E partiu descansado.
Por pouco tempo. Já ia no avião quando se apercebeu que cometera um erro: o candeeiro de pé alto estava até apoiado a um canto, mas tinha uma das suas telas por cima. Se o prego que a segurava cedesse, o quadro talvez batesse no abat-jour, o candeeiro caísse e ficasse aquelas mais de quatro horas com a lâmpada encostada sabe-se lá a quê. Nem queria pensar. Mas, que fazer? O que não tem remédio remediado está. Conformou-se com o que o destino lhe reservaria. E desfrutou a viagem sem angústias.
Mas o destino não o ameaçava apenas a cinco mil quilómetros de distância. Na ponta final das férias, depois de ter visitado talvez um dezena de túmulos e templos por todo o vale do Nilo, já em Abu Simbel, na visita ao túmulo de Nefertari, desequilibrou-se com um pequeno desnível do chão, caiu, bateu com a cabeça na laje e desmaiou. Disseram-lhe que foi uma questão de 15 segundos; nem foi preciso chamar apoio médico. Salado acordou normalmente e ficou consciente, apenas com um pequeno “galo” no frontal direito. E três dias depois estava de regresso a Lisboa.
Ao chegar a casa, meteu a chave à porta, mas a porta não abriu; parecia presa. Teria descaído? Tentou puxá-la para cima, enquanto a empurrava, mas mantinha-se perra. Parecia ter qualquer coisa atrás. Curiosamente, a luz do hall acendeu-se, o que lhe fez acelerar a pulsação. «Está alguém lá dentro», concluiu, em pânico.
Pediu apoio ao vizinho de cima e, quando a empurraram com força, a porta arrastou alguma coisa e abriu-se. Então depararam com os tacos de madeira do chão levantados em grande parte do hall. Tinham sido eles que travavam a porta. Que mistério! Não havia torneiras abertas, nem fugas de água visíveis. Nem foi possível, nos dias seguintes, descortinar a causa do levantamento dos tacos, nem da evidente areia fina, por baixo dos tacos...
Também se surpreendeu com as duas geringonças montadas em casa ― tinha-se esquecido completamente. O candeeiro lá estava a cumprir, sem acidentes, nem rebeldias, a função de que tinha sido encarregado. Aparentemente.
Nessa noite já achou estranhas as notícias. Aliás, tinha-se até esquecido dos grandes conflitos em curso.
Agora, diziam que os países europeus tencionavam comprar armas e munições aos Estados Unidos para oferecerem à Ucrânia e esta despejar sobre a Rússia. «Curiosa combinação! Uns fazem a guerra por procuração, outros a guerra barata; e outros o negócio do século. Uns ficam com a despesa; outros com os mortos; e outros com a vitória económica. Assimetria total. Quando parti para o Egito, não se falava em prendas explosivas. Será que entregam os mísseis com laçarotes?», ironizou para si, Salado.
No dia seguinte, diziam que o Trump queria comprar Gaza aos palestinianos para fazer lá um formidável empreendimento turístico. A maluqueira do Trump era grande, mas esta notícia?
Salado começou a desconfiar da sua sanidade mental. Aquela pancada com a cabeça no chão do túmulo da Nefertari talvez tivesse feito estragos não visíveis, mas que estivessem a comprometer o seu discernimento.
No outro dia, os europeus afirmavam que a única maneira aceitável de conseguir a paz na Ucrânia era derrotar a Rússia. Entretanto, prosseguiria a guerra. Não diziam qual o número aceitável de ucranianos a sacrificar, por cada quilómetro quadrado reconquistado. Parecia muito fácil ser valente com os corpos dos outros.
Mais um dia, mais um perplexidade: agora, vários países reafirmavam a solução de dois estados ― Israel e Palestina ―, desde que o Hamas fosse desmantelado. Por ser terrorista. Num canal do Qatar alguém gritava: «Todos os estados opressores chamam terroristas aos combatentes pela libertação. E sempre tiveram de negociar com eles e passar-lhes o poder. Estes agora querem escolher os representantes dos palestinianos?»
Mais um dia e a notícia era de que alguns países europeus declaravam a inevitabilidade de desmantelar o estado social ― as reformas, as pensões, os apoios sociais, o subsídio de desemprego e outros ―, para conseguirem criar uma estrutura militar que pudesse combater a Rússia.
«Alguma coisa se passa com a televisão» ― pensou.
― O vizinho viu a notícia na televisão de que vão acabar com as pensões para gastar em mísseis? ― perguntou ele a um vizinho, que encontrou na escada.
― Capazes disso são eles... ― deu ele de ombros. ― Estão mortinhos para começarem todos à batatada. Eles é que mandam nisto...
Dois dias depois, um comentador televisivo declarava que colegas e camaradas na NATO lhe tinham assegurado que esta força está e estará preparada para defender todos os centímetros quadrados do território euro-atlântico e derrotar a Rússia em qualquer teatro de operações, seja guerra convencional, seja guerra nuclear. «A guerra nuclear pode ter e terá vencedores» ― asseverava.
«Está tudo doido?» ― arrepiou-se.
Mais um dia, uma comentadora, com os escombros de Gaza a encher o ecrã, afirmava que Israel tem o direito de se defender. «Caramba, sem corar!», espantou-se Salado.
Noutro dia, outro militante dizia que, em 61, Cuba não podia colocar ogivas nucleares na sua ilha, mas que agora é diferente. «A Ucrânia tem todo o direito a fazê-lo.»
Salado deixou de contar os dias. Num deles saltou de pasmo: uma fila de jornalistas, dos mais graduados, muito alinhadinhos, estavam a receber condecorações de um responsável da NATO. Chamavam-nos pelo nome, antecedido do posto, eles avançavam até ao oficial americano que lhes passava a faixa pela cabeça, faziam continência e voltavam ao lugar, muito compenetrados.
― Mentira, isto não pode ser! ― indignou-se Salado. ― Se isto fosse verdade, não mostravam.
― O vizinho viu ontem os jornalistas a receber condecorações da NATO? ― perguntou ele ao vizinho.
― Capazes disso são eles... ― aventou o inquirido, em tom conspirativo. ― Estão sempre desejosos que haja barafunda. Quanto mais espantosa, mais vendem. Eu acho que, às vezes, são eles que mexem os cordelinhos para porem toda a gente à pancada. Eles é que mandam nisto...
― Capazes disso são eles… ― respondeu Salado, para terminar a conversa, mas já estava a ver que não seria o vizinho a tirar-lhe dúvidas sobre o que se estava a passar.
À tarde, de pin com caveira na lapela, Netanyhau declarava que esperava receber o Prémio Nobel da Paz. Era demasiado inconcebível. O problema não devia ser da televisão. Alguma coisa de terrível se passava, mas devia ser com o seu cérebro: estava a alterar a realidade. Resolveu recorrer às urgências.
Ao chegar ao hospital confirmou os seus piores receios: ― a urgência estava fechada. Uma urgência fechada? Era o mundo em si que chegava alterado ao seu intelecto. Sentimentos de fragilidade física e finitude invadiram-no. A quem pedir ajuda, quando o nosso cérebro soçobra?
Resolveu perder o amor a mais de 100 euros e consultar um psiquiatra privado.
― Ó homem, por onde é que você tem andado? ― reagiu o médico, quando Salado lhe contou de que se queixava. ― O clima de confrontação está ao rubro e essas singularidades de política externa estão mesmo a acontecer. E, naturalmente, vão sendo noticiadas pelas televisões. Mas, tem de lhes dar um desconto. Eles não conseguem evitar passar de jornalistas independentes a militantes do nosso bloco militar. Aparentemente muito lógicos, patriotas e bem-intencionados, mas a amplificar as teses militaristas e armamentistas. Mas, se você não se sente confortável com o ambiente que se vive agora, eu posso receitar-lhe uns antidepressivos e uns hipnóticos…
Salado começou a tomar os medicamentos, mas tudo parecia piorar.
Um dia, acordou com uma enorme dor de cabeça. Conseguiu ligar para a Saúde 24, pouco depois veio uma ambulância buscá-lo e levá-lo para um hospital a funcionar. Tinha um aneurisma cerebral, provavelmente devido a traumatismo craniano. Foi operado de urgência e salvou-se in extremis. Deram-lhe alta três semanas depois, mas atendendo ao histórico, proibiram-no de ver notícias. Quando a guerra generalizada começou, não sabia de nada, e culpou aquela queda pela psicose alucinatória recorrente que o afligia.
Joaquim Bispo
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Imagem: Pieter Brueghel, o Velho, A Parábola dos Cegos, 1568.
Museu de Capodimonte, Nápoles.
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