Ao
sair do emprego, Elsa olhou para o relógio, mais por um descargo de
consciência, sabia bem que a finalização daquele relatório demorara bem mais do
que previra e estava, agora, em plena hora de ponta, algo que evitava sempre
que possível, tirando o máximo proveito do horário flexível que a empresa
oferecia a quem o quisesse.
Ainda
pensou ir à mesma apanhar o comboio, cheiíssimo àquela hora, mas a ideia de uma
boa meia hora de pé, entalada entre pessoas de todos os tamanhos e feitios,
demoveu-a. Decidiu, pois, fazer uma visitinha ao seu antiquário favorito, duas
portas adiante. Bom, não era mais uma loja de coisas em segunda mão, totalmente
atafulhada, mas onde com algum tempo e paciência era possível encontrar coisas
bem interessantes.
Era
cliente habitual desde que a descobrira, tendo adquirido inúmeros objetos para
o seu apartamento, até mesmo alguns móveis, sem falar em presentes diferentes
para familiares e amigos. E nem de propósito, a mãe fazia anos daí a cerca de
duas semanas e ainda não encontrara nada que lhe enchesse as medidas. Ou seja,
só vantagens, procurar um presente e evitar as confusões da hora de ponta. O
único inconveniente é que sabia bem, por experiências passadas, que corria o
risco de perder a noção das horas e chegar tardíssimo a casa. Mas, como vivia
sozinha, também não era grande problema.
Entrou,
pois, e, contra o costume, descobriu logo um bonito alfinete de ouro e esmalte,
muito ao gosto da mãe. Ou seja, primeira tarefa cumprida, faltava apenas
esperar o alívio dos transportes daí a um bom pedaço. Mas não era um grande
problema, não faltavam coisas a reclamarem a sua atenção.
Duas
horas depois, sim, como temera perdera a noção do tempo, preparava-se para
pagar o presente da mãe e iniciar o regresso a casa quando algo pareceu puxá-la
para um dos cantos da loja. Era um cofrezinho de madeira, cheio de poeira e sem
nada que justificasse a sua compra numa fase em que já só adquiria peças mais
ou menos excecionais para o seu já demasiado cheio apartamento.
Virou-lhe
as costas para se dirigir à caixa, mas não conseguiu afastar-se mais do que uns
passos. E sem bem saber como nem porquê, acabou por sair com ele debaixo do
braço, atabalhoadamente embrulhado num pedaço de papel pardo. Felizmente o
comboio ia quase vazio, é que apesar de pequeno o cofrezinho não era exatamente
leve, devia ser feito de algum tipo de madeira pesada.
Com
a hora tardia da chegada a casa, só no dia seguinte, um sábado, lhe pôde
dedicar alguma atenção. A primeira coisa a fazer era uma limpeza a fundo, sem
produtos agressivos, claro, mas com muito esforço de braços para lhe retirar o
muito pó e gordura entranhados em todas as suas superfícies, até no fundo.
Concluída
esta morosa operação, viu-se perante uma caixa retangular, com uns 30 cm de
comprimento e uns 10 de largura, de tampa abaulada, feito de uma madeira que
não sabia identificar, mas que tinha uns bonitos laivos quase arruivados.
Detalhe
curioso, tampa e lados apresentavam gravuras pouco fundas, em que não tinha reparado por estarem totalmente
cobertas de sujidade. Não eram nada de especial, uns meros círculos e espirais,
mas entrelaçados de um modo estranho e que prendia o olhar.
Não
se via nem fecho nem fechadura, a tampa assentava, muito simplesmente, sobre os
lados. E no interior viam-se restos de um tecido muito coçado, muito
possivelmente um veludo vermelho escuro, com que estaria forrado nos seus
tempos áureos. Arrancou-o, claro, com alguma dificuldade porque estava bem
colado em certas zonas, planeando voltar a forrá-lo quando encontrasse um
tecido a seu gosto.
Agora
que o via bem limpo, Elsa conclui que tinha sido, afinal, uma boa compra, nada
de especial, é certo, mas o preço também não o fora. Seria ótimo para guardar
as bijuterias e joias pouco valiosas que usava mais frequentemente, ficando
muito bem num canto do tampo da sua cómoda, onde o pôs de imediato, mas sem o
encher, não lhe agradava a ideia de o fazer antes de o forrar.
Sim,
fora uma belíssima compra. Só que...
Os
sonhos começaram nessa mesma noite, fazendo-a acordar de manhã ainda mais
cansada do que quando se deitara. E eram sempre os mesmos, tendo, como figura
de destaque, o recém-adquirido cofrezinho de madeira. Como lhe era habitual,
pouco recordava sobre o que sonhara, mas, à força de repetições, acabou por
fazer uma ideia.
Só
que era tudo muito confuso, misturando cenas obviamente de fantasia, como
animais falantes, com outras mais reais que pareciam girar em torno de uma
mulher idosa, um tanto rechonchuda, com cabelos quase brancos sempre presos num
carrapito complicado formado por um emaranhado de trancinhas e uma voz
melodiosa mas que às vezes se elevava em tom de zanga.
Como
é usual, a repetição causa habituação e ao fim de umas semanas Elsa já
conseguia ter uma boa noite de sono, apesar de os sonhos continuarem. Ainda
tinha pensado livrar-se do cofrezinho, a origem, pelo menos aparente, de todos
estes problemas, mas não conseguira. Forrara-o, sim, com um pedaço de brocado
que encontrara numa gaveta e era agora o seu guarda-joias do dia-a-dia.
Desistira,
também, de tentar entender aqueles sonhos tão bizarros, uma vez que não
pareciam encaixar em nenhum paradigma, freudiano, jungiano ou outro.
Resignara-se à ideia de que nem tudo tem explicação, que há realmente muita
coisa desconhecida neste nosso mundo que queremos tão lógico.
Mas,
uns meses depois, a mãe fez-lhe uma das suas raras visitas – Elsa ia, quase
sempre, a casa dos pais, por uma questão de hábito e também de comodidade,
adorava o seu apartamento mas não era exatamente espaçoso. Como sempre
acontecia nestas ocasiões, houve direito a uma visita guiada às “novidades”, ou
seja, as velharias, como a mãe lhes chamava, adquiridas desde a última vez.
Desta
vez havia pouca coisa, só dois ou três objetos, entre eles o cofrezinho de
madeira que tantos problemas lhe tinha causado. Inicialmente, a mãe nada disse,
limitando-se a concordar que tinha o tamanho certo para o uso a que o
destinara. Mas quando iam a sair do quarto, voltou para trás e pegou-lhe,
observando-o muito bem de todos os lados.
E,
com grande espanto de Elsa, saiu-se a dizer:
-
Sabes, é curioso, mas é igualzinho a um cofrezinho que a tua avó tinha no
quarto dela e que tu adoravas.
Foi
como um raio a iluminar-lhe a mente, recordou-se, subitamente, das longas
tardes, após a escola, passadas no quarto / sala da avó, em casa do pais, onde
fazia os trabalhos de casa e onde ouvia histórias de todos os tipos, de contos
de fadas a casos reais, ou dados como tal, da vida da avó, a tal senhora
rechonchuda, de carrapito e voz melodiosa que era a figura central dos seus
sonhos.
Infelizmente,
tinha morrido quando Elsa tinha 10 anos, já lá ia, pois, algum tempo, não
admira não ter reconhecido o cofrezinho que sempre a tinha fascinado em miúda,
quando passara horas a tentar traçar todos os seus entrelaçados desenhos
enquanto ouvia as histórias da avó.
Luísa Lopes
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