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quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Susto


 

A tempestade acordou-a bruscamente. Estremunhada, quase deu um pulo na cama quando um tremendo trovão rebentou mesmo por cima de si, fazendo estremecer todo o prédio. Enfiou-se ainda mais sob os cobertores, tentando ignorar as salvas quase contínuas e os raios que penetravam pela espessa cortina da janela à frente da cama. Tinha mesmo de mandar arranjar aquela persiana, sobretudo agora que o inverno estava a começar, trazendo os seus inevitáveis temporais.

Não sabia que horas seriam, supunha ser bastante tarde, mas quando estendeu a mão para acender o candeeiro da mesinha de cabeceira e consultar o velho relógio que ali tinha, descobriu que ou a lâmpada se fundira ou estava mesmo sem luz. Talvez fosse melhor assim, trovoada e eletricidade não eram uma boa combinação, por muito que lhe dissessem o contrário, e isso apesar de ter um medo de morte do escuro.

Encolheu-se toda sob a roupa, quase numa bola, tentando criar um ninho onde se sentisse um bocadinho mais segura. Mas em vão, toda ela tremia com o pavor que as tempestades lhe incutiam desde bem miúda.

De repente, ficou hirta. Parecera-lhe ter ouvido um outro som subjacente ao da trovoada, por muito impossível que parecesse. Pôs a cabeça um pouco de fora do seu ninho e esforçou-se por aguçar os ouvidos e apurar que mais se estaria a passar.

Uma breve pausa no batuque celestial confirmou-lhe a suspeita, alguém abria a porta da entrada do seu pequeno apartamento. Com três fechaduras bem sólidas, era uma operação demorada e impossível de executar silenciosamente, sobretudo a última, que estava há muito um pouco perra.

Pensou imediatamente em telefonar à Polícia ou, melhor ainda, ao filho, que vivia no mesmo prédio e chegaria bem mais rápido. Afastou, pois, um pouco a pesada roupa da cama para se levantar e ir buscar o telemóvel à cómoda, onde o punha a carregar durante a noite. Ainda só tinha uma perna de fora quando se lembrou de que, contra o costume há muito arreigado, o deixara na sala, juntamente com o carregador, por ter ficado quase sem carga após uma longa conversa com uma amiga que acabara de regressar de uma viagem ao Canadá.

Voltou a enfiar-se sob a roupa, a tremer cada vez mais, sem saber agora se era da trovoada se do medo de quem lhe estaria a entrar à socapa em casa.

Família e amigos estavam sempre a gozar com ela por ter medo de tudo e de mais alguma coisa, de ver terrores em coisa nenhuma, pois bem, só esperava sobreviver para lhes esfregar esta noite na cara!

A tempestade afastara-se um pouco, mas isso não lhe deu qualquer satisfação, o silêncio exterior permitia-lhe agora ouvir claramente os passos que se iam aproximando da frágil porta do quarto, mesmo à direita da cama.

À luz de um relâmpago, viu o puxador rodar lentamente e nem coragem teve para gritar, apesar de ter sempre dito que, se viesse a acontecer uma situação destas, todos a ouviriam no prédio inteiro e até em toda a rua.

A porta do quarto foi-se abrindo lentamente e a última coisa de que teve consciência foi de ver uma cabeça a espreitar pela abertura.

Quando recuperou os sentidos, o filho teve imenso trabalho para a conseguir acalmar. É que quando faltara a luz, estava ele ao computador a ultimar um trabalho, descera imediatamente do seu andar para ver como ela estava, sabendo bem do pavor que a mãe tinha de trovoadas e do escuro.

Como sem luz a campainha da porta não funcionava, decidira usar a chave que recebera para acudir a emergências. E fora o mais sorrateiro possível para evitar acordá-la na hipótese remota de o alarido dos céus não a ter despertado.

Luísa Lopes

Imagem gerada por Wombo Dream

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