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quinta-feira, 24 de março de 2022

Enfrentar o mundo com uma bainha

 


Na sua câmara no gineceu do palácio, Penélope medita sobre a sua impotência perante as insistências desprezíveis dos pretendentes. Lá em baixo, na sala grande, banqueteiam-se com as olorosas carnes das rezes dos seus domínios, estrondeando júbilos alarves, sem respeito pela casa que os acolhe, nem pela sua anfitriã. A repulsa física que sente por aqueles brutos não é menor do que a ira pelo saque que impõem ao seu património. Tivesse ela uma espada e outro seria o festim e outras as carnes sacrificadas, mas Penélope não dispõe de mais do que de uma bainha.

Ulisses partiu há muitos anos, elevando em glória a sua espada fulgurante. À frente dos seus guerreiros, a espada de Ulisses prometia a vitória junto aos muros de Troia. Ele e os seus companheiros iriam enterrar as espadas de Marte em muitos corpos de opositores valorosos. Para trás ficaram as esposas, as mães, com a ambígua defesa das suas bainhas de Vénus. Como enfrentar o mundo com uma bainha?

Dez anos durou a guerra de Troia. Foram batalhas constantes ou só um tedioso cerco, como sussurrava o rumor? Em que atividades teriam os combatentes gastado esses dez anos? Conhecendo os homens e os seus valores maiores, Penélope acredita que passaram os intermináveis dias de assédio a exibir e a comparar as suas espadas. E a afagá-las para lhes realçar o brilho. Muita vaidade têm os homens nas suas espadas. Na sua rigidez confiam, do seu brilho se orgulham, nelas se reveem, como símbolo excelso do esplendor da sua virilidade.

Passados esses dez anos, saqueada Troia, todos os combatentes regressaram aos seus lares, para maior ou menor fortuna, mas Ulisses não. Andará a saquear cidades, a depredar campos inimigos, a arrebatar manadas de gordos vitelos? Ou, objeto da ira dos deuses, terá sido desviado da sua rota para praias distantes, rochedos destruidores? Como poderá Penélope saber? Um viajante naufragado nas costas de Ítaca diz-lhe que viu Ulisses em Creta, recebido com louvores de herói pelo soberano; outro, que percorre os portos da Fenícia, diz-lhe que ouviu falar em desditas marítimas do navegador Ulisses.

Penélope espera. Que pode uma esposa amante do seu esposo fazer senão esperar? Sente saudades. Sente solidão. Aninhada no leito que partilhou com Ulisses, compadece-se da sua bainha, também ela ali abandonada, triste e chorosa, como criança perdida e faminta. Em desvelos maternais, enche-a de carinhos para que consiga adormecer.

Passaram já dezassete anos e Ulisses mantém-se ausente. O pai de Penélope insiste que é tempo demais para esperar; que ela deve aceitar a corte dos mais que prováveis pretendentes e voltar a casar. O mundo conspira contra as mulheres. Todos sentenciam que tem de haver uma espada naquela casa. O filho de Ulisses arvora naturalmente uma espada, mas tem apenas dezassete anos. É demasiado novo para defender um património como o de seu pai.

Penélope é ainda bastante jovem e bela e suscita claramente o interesse de muitos pretendentes da ilha e de fora dela, todos nobres e valorosos, como exige a nobreza da excelente requestada. Parece, no entanto, a Penélope que é maior o interesse dos pretendentes na riqueza imensa que o património de Ulisses representa. A todos vai negando o seu leito e os seus domínios, mas eles não arredam pé. Apoiados na sentença espatária do pai de Penélope vão ficando, vão-se instalando, comendo e bebendo à conta dos bens de Ulisses, até que ela escolha um deles.

São muitos, fazem questão de exibir a evidência das suas espadas, não se pode combatê-los senão com astúcia. Penélope é a esposa de um homem conhecido como “Ulisses dos mil ardis”. Também ela medita em estratagemas para ganhar tempo.

Uma ajuda a Penélope é decidida pelos deuses, a pedido de Atena e por ela personificada. Casta como é, admira e quer recompensar a fidelidade conjugal de Penélope. Uma ideia é inspirada à mortal.

Declara que escolherá um pretendente depois de completar a mortalha fúnebre para o pai de Ulisses, que está entrado em anos. Pode ser que entretanto Ulisses chegue. Mas os meses passam e Ulisses não regressa. Penélope desfaz de noite a urdidura tecida durante o dia.

Penélope já não sabe que mais temer: a morte funesta do esposo em batalhas remotas ou a sedução de feiticeiras, ninfas e deusas invejosas. Em quem andará Ulisses a cravar a espada: em corpos de inimigos cruéis e desprezíveis ou em carnes mais delicadas e propícias? As costas dos mares irrequietos estão cheias de tentações e perigos.

Tecer, urdir uma teia, lidar com miríades de fios, juntar uns, separar outros, ajuda Penélope a meditar, a ter uma visão alargada da complexidade dos desafios que enfrenta. Apura-lhe a intuição, desvenda-lhe outros padrões, outras tecituras. Avalia possibilidades onde antes só encontrava entraves. Atena não a abandona.

Conferencia com o filho e com Mentor, o fiel amigo que Ulisses deixou a tomar conta dos seus domínios. Envia-os a pedir ajuda aos bravos heróis e companheiros de Ulisses em Troia, que há muito regressaram, mas também eles só vislumbram a solução matrimonial com um pretendente. A lógica da espada prevalece.

Seu pai e seus irmãos pressionam Penélope para que aceite Eurímaco, o pretendente que mais ricas prendas tem oferecido. Também a ela este parece o menos mau dos que a cortejam. Nunca Antínoo, o rude e agressivo líder da turba arrogante dos pretendentes. Disfarçadamente, vai avaliando os modos corteses de Eurímaco, o seu porte nobre, a elegância do seu gládio, bem mais admirável que as desprezíveis adagas ou as traiçoeiras cimitarras da maioria. Mas custa-lhe a imposição da escolha. Não é opção para uma rainha. Sobretudo sem a certeza da morte de Ulisses.

Se os pretendentes fossem dois ou três, facilmente poderia criar algumas intrigas, acicatar ciúmes e livrar-se de todos, mas com cento e oito…

Terrível dilema. É como se Hera, protetora das mulheres casadas, sentindo curiosidade pela extrema fidelidade de Penélope, bloqueasse outras ajudas dos deuses, propondo-se ver como conseguirá uma mortal desenvencilhar-se do aperto em que se encontra. Talvez a mortal encontre soluções para problemas tão complexos como os que por vezes ela própria enfrenta — as constantes traições de Zeus.

A situação é muito difícil, é um problema sem solução visível. Só os aedos vislumbraram e cantaram uma. Supostamente devida a um auxílio a Ulisses decidido pelos deuses. Homero cantará um regresso tumultuoso e arrasador de Ulisses. Com o auxílio de Atena, chegará a Ítaca disfarçado de mendigo, entrará no seu palácio ocupado, com a ajuda do filho e de um porqueiro, revelar-se-á a alguns servos indefetíveis e obterá o seu apoio. Arquitetará então um plano terrível que executará implacavelmente até à morte de todos os pretendentes. Sem perdoar um. E até de algumas servas que a eles se entregaram, por terem transformado em bordel a casa da sua senhora.

Que Ulisses implacável é este? Quão brutal e sanguinário se tornou um homem que, tendo já matado os principais e mais odiosos pretendentes, prossegue o massacre, mesmo depois de pedidos de perdão e declarações de pagamento de todos os depredações executadas na sua casa? E ter matado simples servas? Como desapareceu a sua lendária sensatez? Em que se transformou Ulisses? Ninguém o reconhece. A maioria só se deixa convencer ao lhe ser mostrada uma antiga cicatriz na perna. Será mesmo Ulisses que regressa? Ou um aventureiro que com ele privou e de quem foi confidente?

Outros aedos cantarão versões libidinosas de amores adúlteros de Penélope. Uma chegará ao extremo de pretender ter ela ido cedendo sucessivamente aos mais de cem pretendentes. Muito adulterada deverá estar a memória para admitir que tal seria concebível a uma princesa de Esparta, cidade por excelência das mulheres virtuosas.

Em nova conferência, Penélope, o filho e Mentor reveem as várias hipóteses. Dificilmente conseguirão livrar-se dos pretendentes pelos meios tradicionais. Eles dispõem da avassaladora vantagem da força, quer imediatamente, quer em retaliações futuras. Há que usar de criatividade, de astúcia, da força do espírito. Penélope fala em manobras de humilhação e do seu possível poder dissuasor. É uma arma poderosa, mas que pode gerar reações de grande brutalidade retaliatória.

Mentor sugere alternativas violentas. Poderia mandar as criadas envenenar-lhes a comida, mas os pais e outros familiares não entenderiam e viriam cobrar vingança. Poderia propor jogos de eliminatórias — corridas de carros, tiro de arco — até ao apuramento de um vencedor. Podiam ser torneios tão viris e violentos que os pretendentes se fossem eliminando fisicamente uns aos outros. Mas sempre restaria algum, talvez um que Penélope não quer ver nem dourado, talvez o odioso Antínoo...

Não; abdicar do poder da escolha está fora de questão. Bem bastara ter sido ela o prémio na corrida de carros que Ulisses vencera. Para acentuar que a escolha nupcial também fora sua, Penélope aceitara seguir Ulisses para Ítaca, em vez de se manter em Esparta, conforme os rogos do pai. Deixar que o acaso decida, seria um retrocesso no controlo do processo e isso é inaceitável.

Há anos que os pretendentes se fizeram presentes. Mais ou menos convincentes, cada um intenta ser o príncipe que a encantará. Aos poucos habituou-se à adulação subjacente. Cada um daqueles jovens almeja elevar em glória a espada no seu leito. A uma decisão sua, podia dar sentido à sua bainha. Mas não é da companhia de um jovem que Penépole sente falta. Ulisses nunca abandona o seu pensamento.

Passaram mais três anos. Completam-se em breve vinte, desde que Ulisses levantou a sua poderosa espada na proa da negra nau que rumava a Troia, encabeçando a flotilha de outras onze. O estratagema de desfazer a urdidura durante a noite foi desmascarado por uma escrava. Penélope é pressionada a escolher um pretendente, das muitas dezenas que todos os dias se fazem comensais nas mesas da sala grande. Que fazer? Adiar a escolha torna-se cada vez mais difícil. Atena cicia-lhe soluções.

Penélope tece, maneja os fios com destreza, medita, imagina que consegue prender um dos fios a um pretendente e comandá-lo. Outro fio a outro pretendente. Um fio para cada um. É uma urdidura ambiciosa, uma teia ampla, global. Cada fio cumpre uma função particular, e juntos completam o tecido. A este cumpre assegurar o resguardo, a proteção, o recato, o seu, de mulher casada, ou viúva, ou só mulher. Através da urdidura pode comandar o seu destino.

A queda de Troia desarticulou o equilíbrio da região. Hordas de desenraizados espreitam e saqueiam as costas mediterrânicas. Penélope toma consciência da força que, se unida, aquela centena de guardiões representa. Uma guarda de elite é a proteção mínima, mas suficiente que a livrará de depredações invasoras. O que consome à mesa é um preço irrisório, comparado com a proteção que oferece. É preciso que o espírito que moveu para ali cada um dos pretendentes se consolide em irmandade protetora.

Se antes, por cortesia, não hostilizava os pretendentes, cada vez os acarinha mais, apesar do deboche que alguns protagonizam. Incentiva e, não raras vezes, aceita honrar com a sua presença os jogos de adestramento bélico e os banquetes subsequentes. Evita que, cansados da espera, desistam, enviando-lhes mensagens personalizadas, sugerindo dias mais auspiciosos e insinuando que pode estar próximo o prémio que espera. Fazendo-o sentir-se especial, envolve cada pretendente num acordo tácito de proteção. Atrás do véu que brota do seu tear, vai conseguindo tecer uma teia coesa e protetora, para si e para Ítaca. Que talvez lhe permita esperar por Ulisses indefinidamente.

Joaquim Bispo

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Imagem: John William Waterhouse, Penélope e os Pretendentes, 1912.

Coleção Aberdeen Art Gallery

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4 comentários:

Ao tentar saber mais sobre as terras do Putin, num livro do círculo de leitores de Robin Milner-Guland e Nikolai Dejevsky, deparei com o termo SAMIZDAT que desconhecia, e que se refere a auto-publicação. Nos tempos de Brejnev, que pretendia que uma disciplina de ferro tinha de ser novamente imposta no país, pois considerava os críticos sociais desviados e renegados políticos, Kruscev tinha tentado liberalizar, mas as perseguições e prisões continuaram nomeadamente a escritores russos que tinham publicado verdades sob pseudónimo no ocidente, casos de, Yuly Daniel e André Siniavsky por propaganda anti-soviética. Os julgamentos foram gravados e publicados em revistas clandestinas, Samizdat. Quanto ao texto o "Homero das Casas Novas" continua com os eus mil ardis.
maneldalcains

Sim. Henry Bugalho, o criador deste site, que também publicou 45 números de uma revista eletrónica com o mesmo título, escolheu o nome da revista evocando exatamente os “samizdat”: «Datilografando, mimeografando, ou simplesmente manuscrevendo, tais autores russos disseminavam suas ideias. E ao leitor era incumbida a tarefa de continuar esta cadeia, reproduzindo tais obras e também as passando adiante. Este processo foi designado "samizdat", que nada mais significa em russo do que "autopublicado", em oposição às publicações oficiais do regime soviético.» Cita e emula Bukovsky, na tática de contornar os entraves editoriais aos autores iniciantes: «Eu mesmo crio, edito, censuro, publico, distribuo e posso ser preso por isso».

Olá, Joaquim Bispo, vejo que continua em frente com a sua revista digital. Parabéns!

Obrigado, Dr. Moutinho.
Em isolamentos de reforma e outros confinamentos igualmente virulentos, escrever e divulgar foi-se tornando estratégia de sobrevivência e gratificação anímicas.
Abraço!

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