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segunda-feira, 20 de setembro de 2021

BICHOS





Uma formiguinha cruza minha caminhada carregando uma folha
oito vezes maior que ela. Parece um saveiro de uma vela só
ziguezagueando por um mar ajardinado, encontrando uma ou
outra embarcação do tipo, no sentido contrário.
Param, cochicham alguma coisa. Não deve ser nada importante,
porque as duas seguem decididas nos seus caminhos opostos.
Ou talvez uma informação fundamental para tocaram a vida,
cada uma na sua. Ou algum desaforo a ponto de não caminharem
juntas. Mas vou me fixar na primeira. Para onde vai tão esforçada?
Hora do almoço, claro. Em algum buraco, formiguinhas esfomeadas
rodeiam a mesa com guardanapo enrolado no pescoço e duas das tantas
perninhas batendo garfos e facas ansiosas pelo repasto que não chega.
Claro que não chega. A mãe não anda em linha reta e ainda cisma em
fofocar com outras iguais. Opa. Uma tenta roubar a folha. Tenso.
A que carrega não larga, a que quer carregar avança embolando
as patinhas, mas depois de um tempo relativo das formigas – talvez
uma Guerra de Cem Anos – a dona da vela verde consegue se desvencilhar
da pirata, que acelera em retirada sabe-se lá para onde.
Sinto que minha caminhada ganha ares de National Geografhic, ainda
mais que minhas lentes naturais percebem um cameleão na beira terracota
de uma jardineira salpicada de folhas secas, pensando que eu estou
pensando que ele é uma delas, tolinho, pensando que tolo sou eu.
E assim que me vê, dá uma meia volta fulminante
e se embrenha no que para ele é uma grande floresta tropical.
Imagino que lá dentro encontre farta fauna para se alimentar e
igarapés para se banhar, já que o rapaz da mangueira há poucos
minutos acabou de fazer chover naquele bioma.
Ih, o camaleão assustado assustou alguém. Lá de dentro voa uma
borboleta azul que rodeia meu caminhar, como se me comboiasse feliz
ou me pedisse ajuda para liquidar, tal um São Jorge salvador,
o Tiranossauro Rex que se apossou de seus domínios.
E retomo os passos firmes em direção à baixa curva glicêmica, quando
sinto algo no meu pescoço, a despeito do balançar ritmado do meu corpo,
desce à gola da camiseta fazendo cosquinha. Bom dia, joaninha.
Que lindo seu pijama. Bolinhas pretas sobre um vermelho sopa de tomate,
um biscuí que agora passeia pelos meus dedos diante meu olhar enfeitiçado,
distraído, a ponto de quase pisar numa minhoca se contorcendo de ponta
a ponta, como se quisesse descobrir de que lado está a cara.
Ao meu recuo súbito, a joaninha voa encantada, engolida pelo denso azul
de maio, mês de céu puro e temperaturas sensatas, tempo de caminhadas
mais que necessárias: contemplativas da vida e suas belezas acima
do bem o do mal. Como o beija flor que risca o vento, para no ar e faz
o que tem que fazer: beija uma flor.
Mas eis que um quero-quero me voa em rasante, esquivo do
golpe e compreendo a advertência: há ovinhos de quero-querinhos chocados
ali por perto e ái de quem se aproximar, mesmo que minha intenção não
seja de rapina.
Dado o recado. Hora de voltar. O infinito jardim cumpriu sua missão.
Abro a porta de casa e encontro um rabo em riste, acelerado como um
metrônomo alegro, e um focinho tenta me escalar com lambidas que se
dizem beijos. Nunca fui cachorreiro. Até passar a ser. Quando descobri
que os bichos vêm ao mundo para futucar a fantasia que doura a razão,
aquecer os afetos e ensinar pureza aos humanos.
Pena que alguns – ou muitos – teimam em não a aprender.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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