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segunda-feira, 20 de julho de 2020

DEPOIS DAQUELE PORRE

Se beber, não dirija. Se beber, não case. Se beber, não digite em redes sociais.
Se beber, não dê defeito.

A essas advertências, mantras dos bons modos, acrescento uma de minha propriedade,
que passo adiante depois de sentir nas entranhas suas consequências devastadoras.

Se beber, não transe com estranhos.

Explico.  Num dos raros momentos em que abri as pernas sem um pingo de entusiasmo
sóbrio por um sujeito desconhecido, dei azar. Ou melhor, dei chance para o azar.
Irresponsáveis, não nos demos conta da falta da camisinha, confiamos nas palavras
cheias de desejo e álcool de um e de outro, e transamos selvagem no banheiro reservado
à presidência da empresa onde uma amiga era executiva.

Explico melhor. A amiga executiva era minha aluna de inglês, que me convidara para
um happy hour, onde a champanhe correu solta entre salas de reunião, gabinetes chiques
e pelas minhas veias, alimentando fantasias libidinosas que devia a mim mesmo.

Era o dia, era a hora. E assim, caminhando em câmera lenta, soltando eloquências,
possuída por uma felicidade extrema, me vi atraída por um cinquentão charmoso e
sedutor, que me devolvia em dobro as flechas maldosas que meus olhares atiravam.

Enquanto a champanhe aumentava sua torcida por mim, já me imaginei levantando
a saia com uma mão e abrindo seu cinto com a outra, como de fato, a ideia se
materializou poucas flutes depois, sentada numa bancada de pia, ora cravando minhas
unhas nas suas costas, ora desgrenhando seus cabelos grisalhos, sempre trocando gostos
secretos de álcool e gente, num escambo de línguas travessas e lábios atrevidos,
indo e voltando, ao tempo em que os relógios dormem.

Adorei.

O diabo é que ele era o Presidente da empresa. Minha amiga ficou uma arara, fazer o quê?
Não sabia que era a vez dela.

Se acreditasse em pragas e mandingas, atribuiria à ex-amiga a responsabilidade pela
enxaqueca a cada dia de menstruação atrasada. O teste de farmácia foi cruel.
Repeti no dia seguinte. Mesmo resultado. Danação.

Com os dois medidores na mão, corri para a empresa do sujeito, que fez questão de não
me reconhecer na sua antessala pomposa, mas mesmo assim cochichei discretamente a notícia
ao seu ouvido de mercador e esfreguei os testes na cara dele. Num estalar de dedos,
um segurança vestido de Armani me levou ao elevador, sem precisar me tocar pelo braço.

Mas nada foi tão humilhante, desconcertante e abjeto quanto receber à noite um envelope
com 20 mil dólares, endereçado à clínica do ginecologista Dr. Jair Pires Manella,
com um bilhete cifrado: "Cuide bem dela, Anjinho, do seu jeito. É uma boa moça".

No mesmo instante meu sangue ferveu. E desceu.

A gravidez psicológica interrompida, se não apenas me privou de um filho, me gerou
um monstro irreconhecível. Entrei pela reunião do Conselho da empresa às 9:30 em ponto,
propositalmente descabelada, malvestida, descalça, desbocada e despejei o envelope com
18 mil dólares na cabeça do Presidente, que não ousou mexer um músculo.

Não eram 20 mil dólares? Eram. Mil foram para o segurança elegante me deixar entrar.
E outros mil para ele me proteger quando terminei o barraco.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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