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sábado, 25 de julho de 2020

A Grande Extinção


Albbano chegou cedo ao “Fetal”, com o coração de sangue frio em agonia. Na véspera, mais um dos seus torossauros poedeiros dava mostras de mal-estar e doença. Alongou o olhar pelo extenso paúl em que habitualmente pastavam e não pôde evitar o desalento. Só meia dúzia era visível. Em ansiedade, apressou o passo para a chocadeira central.

O sol iniciava o percurso descendente sobre a área predominantemente agrícola que será conhecida, sessenta e cinco milhões de anos depois, por Lourinhã e se estende bem para dentro do espaço que será mar no futuro. Em todos os ninhos urbanos terminaram já as diligências alimentares do período zenital, exceto no ninho de Albbano. Não é comum ele atrasar-se, quanto mais não aparecer em tempo de tão vital necessidade. Alddina mantinha quentes as fatias de ovos de anquilossauro com caules tenros de rhynia, enquanto, inquieta, espreitava o caminho, na esperança da chegada iminente do companheiro. A certo momento, achou que tamanho atraso não podia significar nada de bom e resolveu pedir ajuda ao filho de ambos, através do comunicador. Alccino não se surpreendeu com a chamada da mãe, porque era frequente ela ligar-lhe para contar pequenas peripécias domésticas, mas quando ouviu a sua voz angustiada a dizer que o pai ainda não chegara para se alimentar, entregou de imediato as tarefas de extração salina que executava numa bacia marinha interior e correu a procurar o pai. Já não era a primeira vez que ele se perdia ou dava sinais de desorientação.
O teu pai saiu do ninho mal raiava o sol e disse que ia ao Vale Fetal, como todos os dias — informou ela. — Estamos na época em que eclodem muitos ovos e é preciso não haver descuidos com as dificuldades das crias.
Está bem, mãe, não te preocupes que eu vou procurá-lo. Assim que o encontrar, comunico contigo — sossegou-a ele.
Alccino transpôs rapidamente a distância até à exploração pecuária do pai. Com o olhar percorreu as suaves ondulações cobertas de polipódios, onde pastavam pachorrentamente uma dúzia de torossauros, e a tentar discernir que animais chafurdavam na lonjura dos paúis das zonas baixas. Não viu a silhueta altiva do pai, um parassaurolofo corpulento, mas um pouco dobrado pela idade. Entrou na chocadeira central, e os funcionários disseram que o tinham visto cedo, mas que ficara abatido quando soubera de mais três eclosões goradas.
Alccino pediu a dois para, em conjunto, fazerem uma busca na exploração.
Eu vou pela encosta do lado esquerdo, e vocês procurem no vale, junto à zona húmida! A propriedade é grande e ele pode estar caído em qualquer lado.
Embora achasse que era mais provável encontrá-lo nas zonas baixas, pensou que, em cotas mais elevadas podia avistar maiores distâncias e descobri-lo. Após um tempo de caminhada atenta pela vertente da ladeira, alcançou o alto da colina. Cheiros adocicados embebiam-no. Por momentos, abstraiu-se do que o trouxera ali. Olhou a toda a volta. Para norte, a vista admirável e querida do seu Vale Fetal, com o verde de vários matizes a colorir a distância até à vertente oposta e mais além. Para sul, a dois vales de distância, as manchas redondas e ocres dos ninhos urbanos da povoação. Mais perto, os vales dos vizinhos e amigos Esppinos e as suas explorações pecuárias de alamossauros, os enormes herbívoros ternos e pachorrentos. Seria possível que o pai tivesse vindo visitar os amigos? Antes de decidir procurá-lo junto dos vizinhos, pensou entender o que acontecera. O pai tinha ficado desanimado com as notícias da manhã na chocadeira e, com a idade, isso desorientara-o. Veio-lhe à memória outro episódio de há muitos anos, quando uma epidemia lhe matara dezenas de animais. Nessa altura, foram descobri-lo amodorrado numa enorme rocha lisa virada ao sol do oeste, implantada num esporão elevado de onde se avistava o mar e aonde só se chegava por uma vereda. Orientou os funcionários para voltarem ao trabalho e pôs-se a caminho.
Realmente foi encontrar o pai alapado na Pedra do Poente em grande prostração. A crista, habitualmente alaranjada, era agora cinzento-esverdeada. Não parecia ferido, só abatido. Aproximou-se suave, mas não furtivamente. Queria ajudá-lo, não invadir a sua privacidade.
Então, pai! Está aqui! Estávamos a ficar preocupados...
Não obteve reação. Albbano mantinha um olhar de enorme tristeza perdido na lonjura. Nada parecia poder animá-lo.
Não fique assim, pai! — disse Alccino cheio de ternura. — São só mais três ovos gorados. Já aconteceu muitas vezes.
O rosto do ancião baixou, em dor interior, sem responder.
Tem de aceitar, pai! Os tempos de fartura e fertilidade já lá vão. Este é o mundo que temos agora.
Alccino comunicou com a mãe a sossegá-la e continuou a tentar animar o pai, com argumentos racionais de relativização dos prejuízos. Finalmente, Albbano começou a falar em voz baixa, pausadamente.
Não são só mais três ovos gorados, filho, nem só mais um animal morto! Nós estamos a extinguir-nos. O ambiente está envenenado com os compostos de irídio que servem para tudo. As crias não conseguem romper a casca. Está cada vez mais dura e inquebrável. E não é só com os animais. Como já te contei algumas vezes, para tu nasceres houve que quebrar a casca artificialmente. Nós, os parassaurolofos, praticamente já só nascemos de crustatomia. Se não fossem os cuidados obstétricos, desaparecíamos. O panorama geral é preocupante. As crias não conseguem romper a casca, os ovos não são fertilizados, as populações de todas as espécies estão a diminuir a um ritmo assustador. Todos os anos desaparecem muitas espécies para sempre.
Calou-se, por momentos, como que a lembrar-se de outros exemplos. Alccino respeitou o silêncio do idoso.
A destruição da vida no planeta, tal como a conhecemos, está a tomar proporções gigantescas. Dantes, além, avistava-se o tremeluzir da superfície do mar. Agora, o que se vê são reflexos de objetos a flutuar. Mantas de tralha a cobrir enormes áreas de oceano. Há quanto tempo lá não vais? É triste, deprimente, apetece não voltar lá mais. Como nos deixámos chegar a esta situação? Estamos mesmo em perigo, acredita!
Fez uma pausa, a ganhar alento.
Eu vou-me informando, sabes! Recebo muita divulgação científica. Já houve outras épocas da Terra com indícios semelhantes e que resultaram em enormes extinções. A maior foi há 185 milhões de anos, que fez desaparecer 96% das espécies marinhas e 70% das terrestres. Devido à gravíssima situação que atravessamos, os cientistas já falam na Extinção em massa do Cretácico, a época atual, ou a Quinta Extinção. Estão registadas cerca de oitocentas espécies que se extinguiram nos últimos quinhentos anos, mas, como a maioria não está documentada, os cientistas calculam que é mais provável que se tenham extinguido entre vinte mil e dois milhões de espécies, só no último século. E, tendo em conta os limites do conhecimento atual, a taxa anual de extinção pode chegar às 140.000 espécies. Estamos no limiar da catástrofe.
Alccino agachou-se, abatido pela força terrível dos números que o pai lhe atirava. A preocupação com o desaparecimento do progenitor desvanecera-se, mas agora um peso inesperado acabrunhava-o. Como era possível que nunca tivesse ouvido falar disto?
Percebes, agora, porque estou desanimado, sem esperança? — interpelou-o Albbano. Há muito que me vou dando conta do que os cientistas vão divulgando.
Mas, pai — reagiu Alccino —, não são só teorias malucas de tipos que veem um mosquito e lhes parece um alamossauro? É que eu nunca ouvi falar disso…
Não, Alcci, quem afirma que a extinção atual é um facto são cientistas conceituados entre os seus pares. Dão conferências, mostram dados, mas parece que ninguém os ouve. E dizem mais; dizem que somos nós — a espécie dominante —, que estamos a provocar a extinção em curso. Com a caça intensiva, a introdução de organismos perigosos para os nativos, a destruição dos ambientes naturais, a desflorestação, a sobreexploração agrícola, a poluição, o envenenamento com agrotóxicos e hormonas pecuárias. Infelizmente, o que está na raiz de todos estes problemas é o crescimento populacional contínuo da nossa espécie e o consequente superconsumo. Já viste que os animais, sobretudo os grandes, não têm áreas onde possam viver em liberdade? O planeta está praticamente todo ocupado por nós...
Mas sempre houve espécies a desaparecer de maneira, digamos, natural, pela natural seleção natural…
Sim, só que com a nossa ação, a que alguns também chamam natural, mas de extensão e intensidade avassaladoras, a perda de biodiversidade é dez a cem vezes mais rápida. E seremos nós que acabaremos por pagar um preço demasiado alto pela rápida diminuição do único conjunto de vida que conhecemos no Universo. Ficaremos sozinhos. Sem a concorrência que vencemos, extinguimo-nos também. Foi uma má opção termos dado ouvidos ao venerado texto que nos aconselhou a multiplicar-nos e a prevalecer sobre todos os outros companheiros de viagem desta nave cósmica.
Isso não pode ser assim tão dramático, pai. Nós somos a espécie mais bem sucedida de toda a história do planeta...
Este sucesso começa a parecer demasiado catastrófico. Os factos são conhecidos, mas infelizmente desconsiderados. E quando há tipos que, como eu, prestam atenção aos problemas ambientais, também não sabem como resolvê-los ou ajudar a minorá-los. A minha “solução” hoje foi esta: deprimir-me. A da nossa espécie devia ser positiva, assertiva, concertada, global, muito profunda. Eu não quero mostrar-te para onde deves olhar, só gostava que tomasses consciência de que há muita coisa a distrair-nos e que nos deixamos alegremente ocupar com problemas menores. A maior razão da minha desesperança é que não acredito que algum dia consigamos inverter o caminho de razia que trilhamos. Quando deteriorarmos o planeta a um nível irreversível, seremos nós a extinguir-nos. Ironicamente, essa pode ser a solução para o planeta e para a vida que restar: livrar-se de nós.
Albbano calou-se. Pai e filho mantiveram-se pensativos ainda por algum tempo. Talvez por ter desabafado, Albbano começou a sentir-se com forças para regressar. Em passos brandos, porque anoitecia e a vereda podia atraiçoar, dirigiram-se para o ninho, em silêncio. Por cima do horizonte, ia nascendo o cometa, que, havia semanas, iluminava as noites em todo o mundo, fazendo os agourentos predizer desgraças iminentes. A majestosa cauda ocupava já boa parte do lado nascente do céu. Caminhar para aquele esplendor celeste não atenuava a sombra de preocupação com a saúde do pai com que Alccino vinha a cismar.
Alddina recebeu-os ainda apreensiva, mas já calma. Depois de uma refeição ligeira, Albbano aninhou-se. Alccino chamou a mãe e agacharam-se a conversar.
Mãe, o pai não está bem. Fez-me uma conversa completamente alucinada. Só fala em fim do mundo e em catástrofes. É expectável que um ancião tenha conversas relacionadas com a morte que se avizinha, mas parece-me que ele está obcecado com ideias de aniquilamento. Temos de o levar ao cuidador mental.
O olhos de Alddina humedeceram. Em esgar, pronunciou:
Já há algum tempo me tinha apercebido de que algo não estava bem, mas não queria admitir. Deve ser excesso de trabalho. Meu querido Albba!

Joaquim Bispo
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Imagem: Rembrandt (atribuído), Retrato de um velho,1632.
Coleção Museu Fogg, Harvard, E.U.A.

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