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sábado, 16 de maio de 2020

Lory Versace



O olho inchado se destaca no rosto cheio de hematomas. O sangue fresco escorre por uma das narinas. Ela cambaleia. O corpo inteiro dor e calafrios. Mas não para. Não pode. Precisa pegar dois ônibus, chegar em casa onde as amigas vão cuidar dela sem perguntar nada. São todas parte de uma mesma história recorrente. 
Ela é Lory Versace. Uma travesti. Faz questão de ser chamada assim. De noite, de dia. Está acostumada às ameaças e aos deboches, a apanhar de machos enfurecidos. Resiste há anos, apesar da violência das porradas que não são mais frequentes porque ela aprendeu a se desviar dos momentos ruins. Porque ela virou criatura das sombras. Afasta-se entre uma transa e outra. Evita os postes de luz no calçadão. Não entra em brigas. Só não pode fugir é dos clientes. E alguns deles a espancam porque ela é o que é. Porque ela faz com que vejam a si mesmos na espiral de mentiras e de hipocrisia com que camuflam suas vidas. Nunca agrediu nenhum deles de volta. Não sabe ferir ninguém. 
Há pouco mais de uma hora, ela entrou num carro. Percebeu a armadilha assim que a porta se fechou. Depois de um tempo, o cheiro do ódio é como o cheiro do sangue, nauseante. Não reagiu. Deixou ele enfiar e tirar de dentro dela o caralho furioso. Permitiu os tapas, os socos, os palavrões. Em breve, tudo acabaria. Mas não. Aquele homem estava possuído por um ódio anormal. Imobilizada pela faca encostada no pescoço, não pôde impedir o pedaço de pau que ele enfiou dentro dela. Nem pôde estancar o sangue que esguichou do seu ânus rasgado pela violência. Quando ele a soltou, ficou aliviada. Mas logo ele a ergueu pelos cabelos, puxando-os como rédeas. E num golpe único com a faca afiada cortou-os bem rente da cabeça, ferindo o coro cabeludo dela. Então ele gozou, urrando. 
Ela cambaleia novamente, quase cai. Se recompõe e corre para pegar o ônibus que está chegando no ponto. Ninguém repara nela. No seu rosto roxo, no seu olho inchado, na roupa rasgada, na perna escorrida de sangue. Nem na faca ensanguentada que ela agarra com força na mão direita. 




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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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