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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Paris, São Paulo

“Publicado nesta segunda-feira (19), o trailer oficial de “Star Wars: O Despertar da Força” movimentou as redes sociais – não só do lado bom, mas também do lado mau da força.
Internautas lançaram nas redes sociais uma campanha de boicote ao novo filme da franquia, que terá um protagonista negro.
O ator John Boyega protagonizará a história no papel de Finn, sendo o primeiro “stormtropper” negro de toda a série.”
Folha de São Paulo, 20 de outubro de 2015, às 11h25

“Maria Julia Coutinho, que apresenta a previsão do tempo no Jornal Nacional, da Rede Globo, foi vítima de racismo na noite dessa quinta (2). Uma publicação na página oficial do programa no Facebook, que trazia uma foto da jornalista “Maju” para ilustrar a chamada “Tempo fica firme em grande parte da região central do Brasil nesta sexta”, recebeu diversos comentários preconceituosos.
“Vai tomar banho e tirar essa cor preta”, “projeto de escapamento”, “a tela da minha TV está preta” e “o tempo está preto hoje” foram alguns dos ataques que a apresentadora sofreu.”
VEJA SP, 1º de junho de 2017, 16h45

EPISÓDIO XXX
          O substantivo Paris não dá nome apenas à capital da França. Dá nome também a uma cidade do Texas, celebrizada em um filme de 1984, dirigido por Win Wenders. Essa cidade, que realmente está no mapa do Texas, está assim definitivamente encravada no Atlas da cultura universal da mesma forma que a Macondo de Gabriel García Márquez, embora esta última não se possa encontrar no mapa político da América Latina. Da mesma forma, eu, Mariana Fortunino, negra de sobrenome italiano, por mérito de anos de estudos e amor à música, encravo, fronteiriça a Macondo, a cidade de Paris, estado de São Paulo, e me autoproclamo sua prefeita, duquesa, rainha ou que outro título eu tiver de usar para garantir minha posição de cortesã.
          Minha dupla licenciatura na USP foi em Português e Italiano e, por isso, minha monografia versou sobre Temistocle Solera, autor dos versos da ópera Nabucco, de Verdi. Fosse eu historiadora, dedicar-me-ia a escrever a História do Racismo e, no capítulo sobre o Brasil, diria que, por não termos em nosso passado, como na África do Sul do Apartheid ou na Geórgia da segregação, leis que impedissem o casamento inter-racial ou dispusessem a separação entre brancos e negros no transporte público, é sustentado oficialmente o discurso de uma democracia racial que mascara o racismo que se faz explícito quando uma pessoa negra alcança um posto historicamente reservado a um branco.
          Meu sobrenome italiano me fez muito bem aceita pelo público quando propus e apresentei, na Rádio Veneza, sediada no bairro do Gonzaga, em Santos, o inovador programa Ópera para Brasileiros. Lá, Mariana Fortunino apresentava ao grande público a arte da ópera, manifestação artística que ainda não obteve a plena cidadania brasileira, embora, em língua italiana, o brasileiro Carlos Gomes, nascido em Campinas, tenha influenciado um dos papas do gênero: foi por ver uma cena de balé em Il Guarany que Giuseppe Verdi decidiu colocar dançarinos em Aída. No programa semanal, de meia hora, eu explicava ao público o que é a ópera, comentava as biografias dos principais compositores e os enredos de suas mais célebres obras. Todo o conteúdo era depois divulgado em formato podcast, e assim alcancei ouvintes não apenas de um extremo a outro do Brasil, mas nos outros países lusófonos. E foi de Luanda que veio a pergunta, na rede social da rádio, se eu praticava o canto lírico. Respondi que sim e dei uma amostra de minha voz entoando alguns versos de Madama Butterfly, de Puccini. Foi tão boa a repercussão que o tempo do programa foi estendido já na semana seguinte, para que eu demonstrasse minha voz enquanto contava as histórias das óperas, antes de brindar o público com gravações consagradas nas vozes de Pavarotti, Maria Callas e outros ídolos líricos.
          Até então, ninguém havia visto meu rosto, pois, cautelosamente, não quis valer-me dos hodiernos recursos que deram aos radialistas a possibilidade de serem vistos por seu público: hoje, muitos programas de rádio dispõem de câmeras que permitem que os internautas os vejam acontecendo ao vivo. Não, eu gravava meu programa antecipadamente e não dava aos neófitos da ópera mais que minha voz e meus conhecimentos.
          O momento do público finalmente me ver foi anunciado quando revelei que conquistara o papel de Violetta Gauthier, numa montagem de La Traviata, de Verdi, a estrear em Maio do presente ano no Teatro Municipal de São Paulo. Prontamente a imprensa enviou seus repórteres para contar aos seus leitores a aguardada estreia. E, para a surpresa de todos, soube-se que Mariana Fortunino era a mesma Mariana da Silva que leciona Língua Portuguesa na Escola Estadual Senador Robert Kennedy, em São Bernardo do Campo. E agora estava explicado por que há muito não era vista, nos lugares de sempre, aquela professora que tantas vezes cantara na missa na histórica igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem e tantas vezes complementara seu magro salário de educadora interpretando Dolores Duran nos bares de Santos ou tocando violino em cerimônias de casamento em Santo Amaro: a doida atrevia-se a compor, no mais prestigiado palco de São Paulo, o elenco de uma ópera italiana!
          Tal consagração não me valeu apenas menções honrosas na Câmara Municipal de São Bernardo e na Assembleia Legislativa, mas também ofensas pelas redes sociais, que, como disse Umberto Eco, deu voz aos idiotas, e, digo eu, também aos intolerantes: como é possível que uma negra faça o papel da amante de Alfredo Germont?
          É conhecido o ditado segundo o qual aos amigos não se dão explicações, porque eles não as exigem, nem aos inimigos, porque eles as desprezam, mas escrevo neste blog este manifesto não para responder aos insultos racistas – pois isso se faz com denúncias e processos judiciais – mas dissertar sobre a Arte e a representatividade negra: quem recusa a uma artista negra um papel que, historicamente, foi de artistas brancas não entende de Arte.
          Para começar, a Arte não tem de reproduzir a realidade. Vejamos: Romeu e Julieta é uma tragédia que se passa na Itália, mas seu texto nunca foi realista, pois foi escrito em Inglês. Desde a primeira representação, fugiu a esse realismo estreito advogado pelos conservadores: se Shakespeare fosse realmente fazer uma obra fiel ao seu cenário, deveria tê-la escrito no dialeto de Verona, cidade do Vêneto, Norte da Itália. Assim, tão legítimo quanto escrever em Inglês uma peça que se passa na Itália renascentista é deslocar esse cenário da Itália para os Estados Unidos, como fez, em 1996, o cineasta Baz Luhrmann, que, se deu ao loiro DiCaprio o papel de Romeu, deu ao negro Harold Pirrineau Jr. o papel de Mercúcio e transformou o loiro príncipe de Verona no negro comissário de polícia interpretado por Vondie Curtis-Hal. Sim, há lugar para negros nos roteiros shakespereanos, e profetizo o dia em que um diretor negro situará a Dinamarca na África, entre Angola e Moçambique, para que Cláudio sente-se em seu trono vestindo um manto de pele de leopardo e a presença de Hamlet seja anunciada ao som de atabaques.
          Usei o verbo “profetizo” não porque eu tenha poderes sobrenaturais para adivinhar o futuro mas porque, assim como é apenas questão de tempo para que um homossexual sente na cadeira que um dia foi de Barack Obama na Casa Branca, também chegará o dia em que um negro viverá Hamlet, pois os conflitos existenciais apresentados por Shakespeare se realizam em todas as épocas e em todos os continentes, como já demonstraram o já citado Luhrmann e o japonês Kurosawa que, em Trono Manchado de Sangue (1957), transportou para o Japão a tragédia de Macbeth. Fatalmente aqui ou em Pretória alguém africanizará a corte de Elsinor, e a história de Hamlet servirá aos negros para expressarem seus conflitos, da mesma forma que, quando Verdi italianizou a dor dos judeus na Babilônia, o pranto desses cativos animou os italianos a se livrarem da dominação austríaca. E quando eu, negra em diáspora, me encontro diante da cena em que Nabucco destrói o templo de Jerusalém, o que vejo são os terreiros de candomblé incendiados criminosamente no Brasil. As dores dos judeus da ópera de Verdi são as mesmas dores dos negros brasileiros.
          Finalizando: que Paris é essa, representada no palco em que me apresento? Não é a Paris do século 19, pois eu não me visto com pesados vestidos em forma de sino tal qual as mulheres da elite, imitando a rainha Vitória. Meus joelhos estão à mostra, como os das mulheres parisienses de hoje. Minha imaginária Paris paulista cantada em língua italiana, nisso, se parece com a Paris francófona além dos Pireneus. Como a Paris onde me movimento e canto, a capital da França tem negros e mestiços. Sempre os teve. O próprio Alexandre Dumas Filho, autor de A Dama das Camélias, obra que originou La Traviata, tinha nas veias negro sangue haitiano, pois mestiço também era Alexandre Dumas Pai, criador dos Três Mosqueteiros, e a quem Jacques Chirac concedeu a glória póstuma de um túmulo no Panteón, junto a outros mestres da língua francesa, como Voltaire e Victor Hugo. Sou, na Paris da ópera, uma cortesã negra, como o era a amante do poeta Baudelaire, Jeanne Duval, atriz e dançarina haitiana, sua musa. Minha Paris moderna e imaginária, cujos habitantes cantam em Italiano, afinal de contas, não é tão diferente da Paris verdadeira, e ambas as cidades comprovam que é impossível fechar aos negros as portas da Arte. Intolerantes, touché!
          Eu, Mariana Fortunino da Silva, agradeço, por fim, todos os aplausos e sigo com a missão que me foi dada por Violetta: “Sempre libera io deggio / Folleggiare di gioia in gioia” [“Sempre livre devo/ Farrear de festa em festa”].

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