Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

AMOR DE MÃE

Não é porque há uma novela no ar com esse título, que eu tenho lembrado muito da minha mãe.
Antes fosse. Dona Valquíria partiu há 11 anos, mas deixou lembranças que me alfinetam pelo
menos dez a vinte vezes ao dia. Chega a ser transtorno obsessivo compulsivo ouvi-la do além.
Morro de medo de acabar como o Norman Bates, o filhinho maluquinho de Psicose do Hitchcock,
mas tento manter as estribeiras da lucidez mesmo com a voz de mamãe ecoando dentro de mim em
situações diversas.

Dona Valquíria era uma pessoa pitoresca e esquisita. Cheia de dogmas, certezas absolutas e
idiossincrasias. Tinha amizades e desafetos. Era inteligente e burra, refinada e tosca.
Expert em proferir besteiras e sabedoria. Vai entender. Boquirrota, falava o que lhe dava
na telha, desde observações impositivas, inoportunas, até conselhos estapafúrdios e raros
em conhecimento de causa.

O abandono precoce do marido – e um pai de maus bofes – não lhe transformou num açude de
ressentimentos, pelo contrário, lhe deu um atrevimento de transbordar uma vontade de viver
incomum para mulheres nascidas para casar. Era à frente do seu tempo. Secretária
executiva enérgica e eficiente, seletiva namoradeira, tinha fixação em sexo. Não me poupava
de prosas íntimas demais para uma relação entre mãe e filho, que deveria ser pautada pela doçura,
a firmeza e a liturgia da maternidade.

- Meu filho, antes passar desodorante, lave e seque bem as axilas. Aí sim, passe o bastão.
Senão vai ficar com cheiro de gambá acuado.

Quando desligo o chuveiro, é a ameaça que sempre ouço antes de pegar a toalha.

Num engarrafamento, tal como ela, sou viciado em fazer a prova dos nove com as placas dos
carros. Herança mais forte do que eu. Quando um sujeito fecha um cruzamento, lá vem ela
soprar no meu cangote.

- Um patife! Que papelão!

Sou um solteirão. Tive vários amores contidos, tenho nenhum, ou várias superpostos,
como queiram. Impossível não ouvir mamãe quando um affair se encorpa.

- Meu filho, essa menina não serve para você. Reparou o pé dela? Você não vai suportar
uma mulher com joanete.
- Meu filho, essa fuma demais. Não sabia que você gostava de lamber cinzeiro.
- Meu filho, cuidado com as virgens. Elas geralmente não gostam da primeira vez,
- Meu filho, não seja afoito na cama. Respeite o tempo de uma mulher.
- Meu filho, nenhum amor por uma mulher merece a sua tristeza.

E assim foi ou não foi, pior, continua indo ou não indo, para o bem ou para mal. Maldição.
Por mais que tenha apelado ao misticismo, aos deuses diversos, aos psicanalistas freudianos,
santos e entidades, às mesas de centros, às missas dominicais e às velas acesas, nunca deixei
de ouvir a mansidão feroz de sua voz, até quando me vejo à beira das vias de fato.

- Meu filho, numa relação sexual, o momento mais importante são as preliminares.
Faça o esforço que puder para que a moça não veja você descalçando as meias.
Não existe ato mais ridículo do que homem nu tirando a meia.

Ah, Dona Valquíria. Não ouvi sua voz hoje, acho que estou me libertando.
Acordei esbaforido, pouco antes do sol nascer, e corri para o laboratório fazer ultrassonografia
abdominal completa. Rotina, nada demais. Vi o dia amanhecer pelas frestas da sala de espera,
vi velhinhos amparados arrastando os pés, vi madames de óculos escuros e pulseiras douradas
reclamando com as atendentes, vi acompanhantes humildes levando carraspana de senhorinhas
impacientes, vi o que me pareceu um executivo metido a besta, terno bem cortado, sapatos
reluzentes e gel no cabelo para trás, de olhos num um jornal inglês, mão segurando um potinho
coletor. Vi um bebê sorridente e inquieto no colo da mãe, tão jovem, já carcomida pela vida.
Senti o cheiro de pão na padaria ao lado provocando meu jejum de 8 horas, chegando junto com o
aperto da bexiga cheia. Vi um casalzinho ansioso, trocando carinhos e cuidados, pensei, exame de
sangue, será que é dessa vez ou fica para o mês que vem? Liguei e desliguei o celular
infinitamente, na esperança de que o wi-fi me desse alguma atenção.

- Sr, José Reinaldo Ferreira Valença.
- Sim, sou eu.
- Pode me acompanhar, por favor.

E parti por um labirinto de corredores assépticos, onde moças de branco cruzavam-se apressadas
desfilando formalidade e simpatia.

- Por favor, entre nesta sala. A Doutora Priscila já vem lhe atender.

Não foi meu debut em ultrassonografias abdominais, mas pela primeira vez, meu clínico geral
resolveu que alguém deveria avaliar as dimensões da minha próstata, não do jeito digital,
mas com os recursos da tecnologia mais avançada, menos humilhante.

- Bom dia, meu nome é Priscila.
- Bom dia, doutora.

Era uma lindeza saída de um filme europeu. Delicada, mãos bem cuidadas, sorrisos amplos,
uma trança perfeitamente mal ajambrada descendo pelo ombro, olhos de metáforas de Machado
de Assis. Imaginei uma recém formada, pela idade e pela brejeirice atrevida de acomodar o
bumbum no banquinho em frente ao computador cheio de fios, scanners e telas.  Mantive um
silêncio rijo e discreto, a compostura conveniente e correta para um cinquentão diante de
uma ninfeta de jaleco.

- Senhor José, por favor, tire a bermuda e a camisa. E deita na cama, Só de cueca, tá?

Danou-se.

Minha mãezinha o que está no céu, santificado seja o vosso nome, está feita a minha desgraça.
Perdoai este filho que não deu ouvidos à sua sabedoria numa manhã apressada. E veio a voz
inconfundível, dessa vez, muito irritada e tarde demais.

- Meu filho, cansei de dizer: cueca velha e frouxa na virilha, nem pensar! Direto no lixo!

Ah, Dona Valquíria.


Share


José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20