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sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O OUTRO LADO DA CALÇADA

A chuva apertou e eu apertei o passo. Como sinto aflição de pingo na cabeça escorrendo
pelo pescoço, estava protegido de agasalho e capuz, vestindo um bermudão escuro até o
joelho e tênis. Ao dobrar apressado para entrar na portaria do meu prédio, ouvi uma
voz imperativa:

- Ô cidadão! Devolve o celular que pegou da menina ali embaixo.
- Hein?

Meia volta súbita e vi um homem de uns 35 anos corpulento, cabeça raspada, camisa escura
para fora da calça, onde era visível um volume escondido na cintura. No instinto, enfiei
a mão no bolso, meio sem entender, para me certificar que não havia trocado de celular
com minha filha instantes atrás ali embaixo na ladeira.

- O porteiro viu o senhor pegando o celular da menina.
- Ela é minha filha! Fui entregar um guarda-chuva para ela!
- Mas o porteiro viu na câmera que o senhor pegou celular dela. Ela desceu e o senhor
subiu correndo.
- Quero falar com o porteiro!
- Por favor, vamos esclarecer. Ele acionou a segurança.

Atravessamos a rua. Eu na frente, sem temores de paralelepípedos fora do lugar, limo
acumulado, calçamento escorregadio. Iniciei um suficiente diálogo.

- Quem é o senhor? Trabalha aqui no condomínio?
- Sou policial.

Medo. Se policiais fardados intimidam, agem como robôs manipulados, à paisana, então,
têm o dom da informalidade desgovernada. Podem fazer o que lhes der na telha. Podem julgar
de supetão, tomar decisões à luz do que carregam na cintura.

Em menos de um minuto, o porteiro gritou da portaria.
- Foi ele mesmo!
- Ele mesmo o quê?
- Que pegou o celular da menina.
- A menina é minha filha! E eu moro no prédio em frente, no mesmo condomínio.
Cuidado com essas acusações falsas. Vocês podem arrumar encrenca.

Fui sabiamente comedido e sereno. Não falei merda, não ameacei os imbecis. Dei as costas
e ainda ouvi vozes embaralhadas, na certa do policial e do porteiro.

- Desculpe, doutor, o senhor me desculpe...
- Esses tempos estão perigosos. Tem muito bandido por aí.

Subi a ladeira bufando com os pés encharcados. Voltei atravessando a rua indignado,
veio um sentimento estranho de que a culpa era do capuz. Tive que concordar com o policial:
que tempos de horror estamos vivendo. O criminoso e o justiceiro, o burro e o inocente,
o arrogante e o pacato cidadão, a autoridade cheia de si e o impotente humilhado, inacreditável,
tudo junto nas ruas, nas calçadas, nos logradouros, nos coletivos, nas nossas fuças.
Um toró de pensamentos me ensopou. O porteiro estava atento, mas não pensou. O policial miserável
que precisa fazer bico obedeceu. E também não pensou. Se eu tivesse roubado o celular de menina,
ia voltar calmamente para casa, na calçada em frente? Nada disso conta na hora limítrofe em que
as coisas acontecem de um jeito ou de outro.  Possibilidades catastróficas me invadiram em looping.
O que de real estava vivendo? Aconteceu o que penso que poderia ter acontecido? Ou poderia ter
acontecido como não aconteceu? Ou de fato aconteceu o que eu não imaginava acontecer num dia de
chuva forte, numa rua bucólica do Leblon?  Acho que estou estonteado, perdendo o chão de pedrinhas portuguesas, vendo luzes frias passando no teto.

A chuva apertou e eu apertei o passo. Como sinto aflição de pingo na cabeça escorrendo pelo
pescoço, estava protegido de agasalho e capuz, vestindo um bermudão escuro até o joelho e tênis.
Ao dobrar apressado para entrar na portaria do meu prédio, ouvi uma voz imperativa:

- Ô cidadão! Devolve o celular que pegou da menina ali embaixo.
- Hein?

Dei meia volta súbita e vi um homem de uns 35 anos corpulento, cabeça raspada, camisa escura
para fora da calça, onde era visível um volume escondido na cintura. No instinto, enfiei a
mão no bolso, meio sem entender, para me certificar que não havia trocado de celular com
minha filha instantes ali embaixo.

Pá.

Levei um tiro. O barulho seco me lembrou a espoleta de um revólver de xerife da Estrela e senti
uma ardência no lado direito do umbigo.

Hoje, dois meses depois, sigo para a quarta cirurgia.  No momento do incidente não foi atingido
nenhum ponto vital, aorta abdominal, rim, coluna, essas brabezas. Fui socorrido grogue pelos
porteiros do meu prédio e ainda percebi o vulto do sujeito corpulento correndo ladeira abaixo.
No entanto, enfurnado por 45 dias num leito da UTI, claro que o estrago no intestino delgado
foi devastador. Uma infecção se espalhou pelas minhas tripas e pressinto que não escapo dessa.

Estou na maca, contando luminárias frias no teto, duas, três, cinco, sete, oito, dez, sei que
na décima terceira é a porta do centro cirúrgico. Já me acostumei, tanto quanto com o gelado do
soro que me entorpece entranhas e ideias, produz paranoias e sentimentos de resignação, fantasia
e realidades atemporais, inconformidades e desejos de vingança, compaixão e saudade da vida breve.

Se sair vivo, talvez apareça no Natal, quem sabe magrinho, debilitado, com um saco de colostomia
escamoteado por uma camisa de festa, girando o arco da cadeira de rodas, onde vou fazer questão de
estacionar ao lado da minha filha, coitadinha, traumatizada, pivô incauto de uma desgraceira tipo
contando ninguém acredita, isso no campo do talvez. Porque no terreno das certezas, vou processar
o condomínio por manter nos seus quadros um porteiro adestrado a confundir guarda-chuva com celular,
pronto para mostrar serviço a qualquer custo, acionar o policial que faz bico e danar tudo.
Como o incidente se deu em bairro de rico, certamente a alegação de excludente de ilicitude será
derrubada por um advogado caro, o condomínio vai me indenizar por danos morais, lucros cessantes
e honrar as custas advocatícias, médicas e hospitalares, o porteiro vai perder o emprego, vai voltar
para sua Bonfim do Piauí, o policial vai ser afastado para funções administrativas, com vista grossa
da corregedoria para fazer bico em outros condomínios endinheirados.

O fato vai interessar à mídia, claro, aconteceu num bairro chique, longe das comunidades onde os
infernos são vulgares. Haverá tabefes de toda sorte nas redes sociais, vou ser acusado de fascista
(coitado do porteiro, assim dirão), elitista (ganhou na justiça porque tem grana, assim falarão),
esquerdopata (o policial cumpriu com o seu dever, assim repetirão). O síndico não vai me cumprimentar
e a senhora vizinha com perfume doce de mamãe vai me encontrar no elevador e aconselhar com carinho a não vestir mais capuz.

O enfermeiro avisa que estou falando alto demais, tudo embolado.
Acho que a anestesia está fazendo efeito.
Ou já morri e nem sei.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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