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quarta-feira, 25 de setembro de 2019

O condutor de rebanhos




Um certo pastor de ovelhas foi imortalizado por Esopo, que contou como ele se divertia a enganar os vizinhos, gritando “Lobo!” sem justificação. Aborrecido por já não conseguir enganar ninguém, vendeu terras e rebanho e foi viver para uma vila distante. Instalou-se num casarão da rua principal — a Alameda do Ocidente —, rodeado por outras casas de gente bem instalada na vida, mas com as traseiras para uma rua de casebres humildes — a Rua Terceira.
Jorge — assim se chamava o anónimo pastor de Esopo — foi vivendo uma existência tão ou mais monótona do que vivia na serra, mas depressa embirrou com um orgulhoso vizinho das traseiras que cultivava tabaco e açúcar. O antigo pastor começou a espalhar rumores de que este vizinho, chamado Galego, tinha amigos de mau porte e pretendia contratar vândalos do Leste para trabalhar nas plantações. Para manter o bom ambiente da vila, dizia Jorge, o melhor era que os cidadãos honrados da rua mais nobre se unissem e obrigassem o suburbano a mudar de modos.
Na verdade, os vizinhos, sem conhecerem a fama antiga de Jorge, mostraram-se indignados com o comportamento do rústico Galego e apoiaram as medidas propostas pelo distinto vizinho que denunciara tão deplorável conduta. Como soluções drásticas não pareceram adequadas, os notáveis da vila decidiram apenas boicotar a sua atividade produtiva. A partir de então, o cultivador não poderia abastecer-se no comércio local, fosse qual fosse o ramo. Nem vender. Esperava-se que o garrote económico o levasse a abandonar a vila e a comunidade pudesse regressar a uma vida tranquila.
Passado algum tempo, Jorge embirrou com outro vizinho humilde. Queixou-se ele às autoridades da vila, de que então já fazia parte, que um tal Pelesete causava muitos incómodos a um outro, chamado Moisés, que entretanto chegara, mas pretendia instalar-se na propriedade de Pelesete, com o argumento de que em tempos ali vivera. Começara por pedir para ficar num descampado, mas, aos poucos, foi expandindo o espaço ocupado e a retórica proprietária. Jorge cedo gostou dele, sobretudo porque lhe permitia caçar naqueles terrenos sem autorização. Daí a defender as suas pretensões foi um passo.
A princípio, o conselho local de homens sensatos não apoiou tão estranha reivindicação, mas Jorge, que vinha a ganhar poder nos negócios da terra, foi muito incisivo nas denúncias das supostas malfeitorias de Pelesete e acabou por levar o seu intento avante. Já não estava em causa a maior ou menor razão de Pelesete, mas a sua fama de brigão e má rês. Decidiu-se manter uma aparente imparcialidade, mas de cada vez que Pelesete reclamava pelos seus direitos de propriedade, o alegado usurpador agredia-o e clamava por ajuda das autoridades, que emitiam sempre o mesmo discurso: «Moisés tem o direito de se defender».
Passado mais algum tempo, Jorge voltou a tomar de ponta um vizinho — Babel —, que vivia num terreno barrento, com grandes dificuldades. Não se sabe bem se Jorge cobiçou a olaria de Babel, ou se não gostou da sua postura altiva, o certo é que passou a acusá-lo das maiores infâmias contra a mulher e os filhos e afirmando que aquele escondia estricnina e outros venenos com que pretendia envenenar a família.
O Grão Conselho, agora já presidido por Jorge, em vista da gravidade das acusações, resolveu intervir de forma decidida e decisiva, e não de formas mais ou menos mitigadas como anteriormente. Enviou os bombeiros à procura dos venenos. Em vista dos resultados negativos, enviou uma brigada da Proteção Civil, que também veio de mãos a abanar. Já bastante irritado, o Conselho enviou a Polícia, com ordens para prender o assassino em potência e encontrar a todo o custo os tão perigosos instrumentos de morte. Os militares avançaram destruindo tudo à passagem e, na confusão criada, o potencial envenenador acabou por ser morto.
Para grande frustração do Conselho, no entanto, não foram encontrados os venenos temíveis. «Eles estão lá», afiançava Jorge, que comandara pessoalmente a operação. Passaram dias, passaram meses, mas ninguém encontrou qualquer veneno. Os familiares de Babel, na falta do patriarca, passaram a viver na pobreza, acusando, à socapa, Jorge de ter inventado tudo para ficar com a olaria, que, em vista das dificuldades, a família teve de vender.
O resultado dramático desta operação de justiça preventiva desencadeada por Jorge suscitou grande constrangimento em todos aqueles que tinham acreditado na veemência das acusações e que, piamente convencidos, tinham apoiado a operação punitiva que veio, ela sim, a revelar-se assassina.
Jorge pareceu acalmar por algum tempo, mas foi sol de pouca dura. Certo dia, saiu-se com uma nova acusação. Segundo ele, um outro empresário que tinha uma confeitaria no fim da Alameda do Oriente estaria a roubar-lhe as receitas dos bolinhos da sorte, pelo que apelava a toda a população para que boicotasse a produção de doçaria do gatuno.
Foi a gota de água que faltava. O povo começou a murmurar, houve quem investigasse o passado de Jorge, soube-se o caso das mentiras que, compulsivamente, lançara quando era pastor numa aldeia distante e onde era conhecido por Jorge Trafulha.
O Grão Conselho reuniu-se de emergência e discutiu-se o problema de Jorge, já como caso patológico. Em vista das provas demolidoras, o Conselho mandou emendar a injustiça feita ao cultivador Galego, voltando ele a poder vender os seus produtos na vila; delimitou e atribuiu um bocado generoso de terreno ao alegado intruso Moisés, devolvendo ao injustiçado Pelesete a maior parte da sua propriedade; obrigou Jorge a devolver a olaria aos familiares do infortunado Babel e a indemnizá-los pelas agressões sofridas, e instituiu o livre comércio em toda a vila, quer de doçaria, quer de quaisquer outros produtos.
Jorge Trafulha, em vista da grave derrota sofrida — em perda de poder, de prestígio, de credibilidade e até de grande parte da fortuna —, achou melhor voltar ao antigo trabalho de pastor. “Talvez ele aprenda humildade com as ovelhas e moderação com o silêncio edificante das serranias”, comentava-se, mas, pode alguém ser quem não é?
Sabe-se, sim, que o sobrenome “Trafulha” passou, desde então, a ter o sentido pejorativo que hoje conhecemos.

Joaquim Bispo

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Esta fábula foi selecionada em concurso literário para integrar a coletânea de contos “Esopo Revisitado”, da Editora Olympia.
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Imagem: Styler [João Cavalheiro], Sem título (Pastor) [Ti Lopes], grafíti (detalhe), 2018.
Alpedrinha, Portugal.
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