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quinta-feira, 25 de abril de 2019

Um crime suburbano



Não é um feito de que me orgulhe, mas tenho de confessar: eu apanho coisas no lixo. De vez em quando, percebo que uma peça interessante está poisada junto a algum dos grupos de caixotes que estão distribuídos um pouco por todo o bairro. Já trouxe para casa uma pequena mesa de apoio de sofá, uma prateleira para frascos de especiarias, uma moldura de madeira trabalhada e pintada de castanho, mas, geralmente só apanho livros. Apesar de poucas pessoas os comprarem, vão aparecendo livros, geralmente escolares, junto aos caixotes.
Esta história começa há uns quatro meses, em uma das minhas voltas de caminhada e exploração, que, invariavelmente, tentam percorrer itinerários menos habituais, quando encontrei uma caixa de cartão com livros, junto a uns caixotes de lixo no “bairro dos sinistrados”. Tinham todos capa preta e eram da mesma coleção de especulação paracientífica, área que agora me interessa pouco, mas que fez sucesso nas décadas de 70 e 80. Percorrendo os títulos, acabei por me agradar de “Os arquivos do insólito”. No meio deles, uma agenda de 2007, de tamanho próximo do dos livros — menor que o A4 —, que aparentemente tinha sido usada como diário. Movido por uma curiosidade voyeurista, acabei por a trazer para casa, também.
Era uma dessas agendas com umas quantas folhas iniciais de informações supostamente úteis, como a conversão entre as medidas inglesas e as do sistema métrico, as distâncias quilométricas entre cidades europeias, os feriados municipais de dezenas de concelhos portugueses, os cálculos de volumes de sólidos simples, e outras irrelevâncias de uso incerto. O resto apresentava três dias por página e estava parcialmente manuscrito. Havia muitos dias em branco, mas o espaço de outros estava aproveitado até às margens, em letra tanto mais pequena quanto o autor percebia que tinha mais para dizer do que o espaço disponível. Havia mesmo dias que invadiam o espaço dos seguintes.
A letra era relativamente bem desenhada e fui lendo as observações do quotidiano de alguém que, aparentemente, vivia de apanhar e vender metal, além de explorar uma horta urbana clandestina. Nada de especialmente movimentado ou excitante, mas, a certa altura, o relato terminava abruptamente e percebia-se que a folha seguinte tinha sido rasgada pela base. Caramba! Este pormenor acicatou-me mais a curiosidade do que o facto de ter encontrado a agenda. Teria a folha sido rasgada por conter alguma peripécia comprometedora ou o autor do diário tinha simplesmente precisado dela para escrever um recado? A curiosidade era grande, mas nada podia fazer.
Nada podia fazer em estado de vigília, mas, quando acordei na manhã seguinte, o trabalho do meu espírito, enquanto dormia, deu frutos. Lembrei-me de ter visto num filme, talvez policial, uma situação semelhante em que o protagonista tinha conseguido reconstituir o que tinha sido escrito, pela análise laboriosa dos sulcos produzidos nas folhas adjacentes pela pressão da ponta da esferográfica na folha arrancada. Inclinando a página seguinte, percebi a existência desses sulcos. O principal estava provado; a técnica para conseguir ler os ditos sulcos fui buscá-la à Internet. Após uma semana de trabalho paciente e meticuloso — polvilhamento com pó de café, meia-linha a meia-linha, aplicação de luz rasante, fotografia de alto contraste —, consegui reconstituir todo o texto desaparecido, que tinha ocupado as duas faces da folha. Aplicar a técnica à folha anterior e já escrita foi mais delicado e moroso, mas no fim consegui ler tudo.
Fiquei alarmado. Realmente, havia razões muito fortes para o autor do diário tentar esconder o que tinha acontecido naquele dia. Tão grave era a situação que a primeira coisa que me ocorreu foi ir à Polícia denunciar o autor, fosse ele quem fosse. Algo, no entanto, me levou a enveredar por uma investigação pessoal: talvez o medo de me expor como testemunha; talvez a necessidade de ocupar os dias de uma reforma monótona. Primeiro, havia que caracterizar o autor do diário e eventual criminoso, pela análise ponderada dos seus escritos. Acompanhem-me nessa análise e avaliem também que tipo de pessoa é esta.

23 de março
Gosto do cheiro das manhãs, da luz limpa e verdadeira do sol nascente. De manhã sou mais eu, mais o jovem que dormia de janela aberta para receber os primeiros raios refletidos no Mar da Palha. Fumava um cigarro a contemplar os alvores rubros em luta contra a neblina do rio, o fumo do meu cigarro a evolar-se pachorrento, como os indolentes vapores da fábrica da farinha que ronronava todo o dia e onde eu trabalhei dez anos. Se fosse dia de folga, voltava a deitar-me para mais umas horas de sono. Uma manhã — maldita seja —, o rubro não era o do astro da vida, era o do génio da morte. A minha fábrica, o meu ganha-pão, era uma garra de fumo negro a esganar o meu futuro e o dos outros operários. Por detrás, o diabo em cabriolas de chamas por entre as máquinas, a cortar tapetes de transporte de grão, a derreter alcatruzes e roldanas, a comer o pão de todos. No momento, ainda suspeitei dos homens de negro de cuja existência os meus livros me avisavam, o que me pareceu que era corroborado pelas luzes estranhas que por vezes via pairar sobre o mouchão, mas não descortinei as suas sinistras silhuetas a assegurarem-se que o mal feito se cumpria na totalidade. Nunca mais lá voltei.
Hoje, o céu estava assim vermelho, potente. Ao pé da escola de baixo estava uma máquina de roupa. Arranquei-lhe o tambor e umas seis peças que consegui cortar, com a mesma raiva de há vinte anos.

2 de abril
Marteladas, o raio que os parta! Quem é que eles pensam que são? Têm a mania que são aristocratas, por afocinharem no gargalo da mini ao fim da tarde na esplanada do café do Sr. Manel. Estes tipos veem-me andar ao cobre, ao latão e ao alumínio e pensam que sou um tipo qualquer, que me podem tratar de qualquer maneira. Não sabem nada de mim, em que ofícios trabalhei, como me realizo, o que sou. Não lhes passa pela cabeça as coisas que eu sei. Nunca viram a minha estante de livros… Devem pensar que Heisenberg é um corredor de automóveis. Não sabem quem é, muito menos o que disse.
«Ó, Marteladas, bebe aqui uma mini, que pago eu.» — grasnou um, de olhinhos apertados pelo prazer do deboche, a querer mais caçoar do que oferecer.
«Marteladas deve ser aquilo que tu já não dás há muito tempo» — foi a minha resposta pronta. Tenho pouca vontade de servir de chacota aos outros, muito menos de tipos que não merecem respeito.
Veio para mim com ar agastado: «Mas, ouve lá, é assim que agradeces? Tu não te enxergas.» Dei-lhe um empurrão que o fez estatelar no chão de mármore, a garrafa a escaqueirar-se e o líquido a espalhar-se. «Quem não se enxerga és tu, que deves estar bêbado desde ontem. Vai mas é beijar o rabo ao teu patrão.» Levantou-se de um salto, os olhos muito abertos a correr para mim, mas eu só levantei o martelo. Hesitou, a ver a questão de outra perspetiva, a olhar para os parceiros a ver se tinha apoio. Só grunhiram uns resmungos de apaziguamento. Já todos me conhecem… Se fosse preciso, tinha a navalha.

8 de abril
Entrou um rato na horta. Não foi nenhum cão, não foi uma rabanada de vento. Foi alguém que entrou lá deliberadamente para roubar. Destorceu o arame que tenho na porta, andou a cheirar e arrancou duas couves. Podia simplesmente tirar umas folhas, mas não. Esta gente não sabe nada de nada. Veem as couves inteiras no supermercado e acham que é assim que se colhem. Estúpidos.

10 de abril
Foi um dia para esquecer. Dei voltas e voltas, cheguei a ir aos Pombais, mas só encontrei umas calhas de estore. Tive de fazer uma saída à noite. A mulher na telenovela a querer saber aonde ia. Por acaso eu chateio-a por ela estar sempre a ver televisão? Felizmente, tenho os meus livros e o escritório. À noite são as novelas, de manhã são aqueles vendedores de rifas. Interessa-lhes lá a música de qualidade ou a formação de cidadania; só querem que se telefone para os sorteios deles, pagando, claro. Deve haver umas centenas de milhares de estúpidos que telefonam todos os dias e não fazem as contas ao que gastam. Se calhar, já ultrapassa o prémio. Creem na sorte e não nas probabilidades. Uma hipótese em duzentas ou quinhentas mil? Parvos.
Só achei mais umas caçarolas e um escadote partido. Não gosto de sair à noite, porque não se pode estar a fazer barulho com o martelo.

13 de abril
Este ano vou plantar morangueiros e espinafres. Aos poucos, vou tendo de tudo. É incrível como um espaço de uns 40 metros quadrados dá tanta coisa: batatas, couves, alfaces, tomates, cenouras, cebolas, alhos, favas, beringelas, feijão grande. Fica caro comprar as ferramentas, as sementes, o adubo — quando encontro, prefiro comprar estrume; é mais natural. Se fôssemos contabilizar o trabalho, então… Mas sei o que como. Parece que me sabe melhor. As batatas têm um sabor que não tem nada a ver com as do super. E passar ali umas horas a tratar das plantas não tem preço. São tão generosas. Se as pessoas tivessem metade da generosidade das plantas…
A primeira horta que arranjei era lá em baixo, ao pé da ribeira. Já lá vão uns anos valentes. O espaço estava baldio e eu precisava de ganhar alguma coisa. Ou, pelo menos, de não gastar. E de ocupar o tempo. Nessa altura estava com subsídio de desemprego e tive de me desenrascar. Pareceu-me que poupar nas compras era uma espécie de complemento do subsídio. E era. Cheguei a ter três macieiras, uma pereira, um pessegueiro, uma ameixieira. Para nós dava. Ou tinha de dar. Passei a ir ao super só para comprar arroz e massa. E alguns enlatados. Mas depois quiseram melhorar o trânsito e fizeram para ali uns viadutos e umas rotundas e usaram o terreno à vontade deles. Enfiaram um pilar mesmo no meio da horta. Tive de procurar outro local. Aqui ao pé de mim tinham andado a mexer na ribeira, quando rasgaram uma rotunda, e deixaram uns espaços que davam umas leiras estreitas e inclinadas. Vedei uma tira com canas, aos poucos endireitei o terreno e criei um ponto firme na berma da ribeira para tirar água. Desloquei para lá uma arca congeladora velha, para fazer de tanque, e uns bidões de plástico. Quando tenho mais tempo, encho tudo. E rego quando é preciso. É quase como se tivesse água canalizada.
O que eu sinto é que aquilo dá-me trabalho, mas tiro de lá compensação mais do que suficiente. De víveres e de serenidade. Quando posso tirar. Porque esta noite o rato voltou e levou as beringelas todas: umas cinco ou seis. Andava a olhar para elas, à espera de ficarem maduras, para fritar às rodelas… Fiquei fulo. Que tipo de pessoa se vem aproveitar do trabalho de outro em seu proveito? Bem, qualquer um. Vivemos numa sociedade podre. Se apanho o ratinho…

16 de abril
Dia de entrega de material. O fulano de Torres Novas apareceu logo às 8 e meia. Só queria dar 50 cêntimos, o quilo, pelo alumínio, 2 euros pelo latão e 3 pelo cobre. Ferro, nem vê-lo. Isto cada vez está pior. Argumentava que as poucas coisas que eu juntei mal davam para a deslocação, porque tinha de pagar o gasóleo, os pórticos e as portagens.
Pouca coisa, para ele, que a mim bem me custou catar peça a peça. E cortá-las aos bocados, de modo a caberem nos bidões. Tinha quatro de ferro, dois de alumínio e meio com coisas de latão e de cobre. Acabou por subir um bocadinho e levou também o ferro. Tudo junto, pouco passou dos 150 euros. Enfim. Podia ser melhor, mas bom jeito dá. Com o que poupo com a horta, vai ajudando a esticar as reformas. E mortinhos que os do Governo andam para lhes meterem a unha.
Ninguém imagina a economia que representa a reciclagem de metal puro, em vez de ser extraído do minério. Ninguém suspeita que se economiza mais de 90% da energia elétrica que seria utilizada na produção do metal a partir da bauxita, li num artigo. Se fizessem as contas à energia que o país poupa ao reciclar os metais que nós, os coletores de sucatas, fornecemos, talvez nos dessem mais valor. É preciso é acabar com os que geram mais prejuízos que poupanças, esses que vão pelos campos de zonas pouco habitadas e desmontam centenas ou quilómetros de cabos de cobre — o “bife do lombo” dos metais —, quer da rede telefónica, quer da de distribuição de energia elétrica. E que roubam tudo o que aparece, desde floreiras e estátuas nos cemitérios, até esculturas, em praças ou rotundas, algumas com centenas de quilos. Vendem por umas dezenas de euros o que pode ter custado milhares. Não tenho nenhum respeito por essa gente. Olham para os trocos no bolso deles, não olham para o mal que fazem. O património artístico não lhes diz nada. Vivem para quê? Em dias fracos, quantas vezes olhei para os puxadores de cobre de algumas portas, mas seria preciso eu estar muito desvairado. Não, comigo não.

Aqui terminavam as páginas escritas. Só transcrevi as que me pareceu que melhor caracterizavam o autor, ao qual podemos chamar Marteladas, à falta de um nome. O que se segue é o texto recuperado, o tal que, aparentemente, o nosso homem quis esconder.

28 de abril
Se calhar, não devia escrever isto, mas preciso de desabafar. Nos últimos dias, houve três assaltos à minha horta. Ontem, depois de a ver patinhada, destruído um alfobre de alfaces e roubadas mais três couves e umas duas dúzias de cenouras, decidi-me. Quem rouba tais quantidades não é para comer, deve ser para vender. Arranjei um banquinho e um cobertor escuro e, à noite, instalei-me na horta, num nicho de canas que improvisei. Pelas duas da manhã, já estava arrependido. Achei que precisava de saber primeiro se o rato vinha à noite ou de manhãzinha. Estava quase a decidir regressar a casa e acolher-me ao quentinho da cama, quando ouvi um restolhar na vereda que dá acesso à horta. O meu coração partiu para uma prova de velocidade. Até tive medo que o barulho que fazia denunciasse a minha presença. Então, vi a sombra de um homem que, cautelosamente, destorceu o arame da porta e entrou quase sem ruído. Pela silhueta, parecia o tipo a quem eu dera um empurrão na esplanada do Sr. Manel. Sacana! Não era por fome, era por vingança. Senti um afrontamento no pescoço. Tentei dominar a raiva. Peguei, silenciosamente, no sacho que tinha posto à mão, disposto a dar uma coça no intruso. Na minha horta não entrava um ratoneiro impunemente. O ratinho olhou, a orientar-se no escuro e, fiado na vedação de canas, acendeu uma lanterna de bolso, mas não consegui divisar-lhe as feições. Momentos depois, já tinha cortado uma couve com uma navalha de bolso. Antes que cortasse outra, saí de trás das canas a gritar. O tipo assustou-se, mas depois cresceu para mim, com a navalha e a lanterna a encandear-me. Estava a ver o caso mal parado. Felizmente, o cabo do sacho era muito mais comprido do que o da navalha dele. Puxei-o de trás de mim, numa rotação lateral acelerada em direção à luz. Ouvi um som abafado e senti que o movimento foi travado por alguma coisa pouco rija e, imediatamente, apenas o escuro, a lanterna no meio das canas, o vulto do malandro a esmagar o canteiro das cebolas. Totalmente aturdido com a rapidez dos acontecimentos, mantive-me em pé, alerta não sei para quê. Passado um tempo que me pareceu infindo, tomei finalmente consciência plena do que acontecera. E da situação melindrosa em que me colocara. Baixei-me a apalpar o vulto caído, mas, pela brecha na cabeça, logo percebi que o irremediável estava feito. O calor de pouco antes deu lugar a um frio intenso. Perigo era o que sentia. Era preciso atuar rapidamente. Desfazer-me do corpo. Atirá-lo à ribeira, escondê-lo, desmanchá-lo. Na escuridão, percebi as manchas claras dos bidões e da arca congeladora. Esta era quase do tamanho do corpo. Não tentei provar a mim mesmo que era a melhor solução. Era uma solução.
As duas horas seguintes foram de trabalho esforçado. Afastei a arca e cavei uma cova suficiente para o corpo. Não a afundei mais que uns 60 centímetros, porque depois havia rocha. Para já, chegava. Arrastei para lá o corpo, tapei-o bem e arrastei a arca para o sítio dela, por cima do corpo. A terra que sobrou espalhei-a nas zonas pisoteadas e aumentei o cômoro das couves.
Voltei para casa, mas não consegui dormir. Nem ontem, nem hoje. São quatro da manhã e estou tão desperto como se tivesse dormido oito horas. Oiço um melro que não para com a cantoria. E só imagino coisas. Lembrei-me outra vez dos homens de negro. A cor negra do pássaro não é por acaso. Deve ser um sinal deles. Será que eles viram tudo? Não sei o que fazer.
*
Caramba! Tinha pensado em inúmeras situações que podiam ter obrigado o Marteladas a desfazer-se de uma folha do diário, desde roubos inconfessáveis, até maroteiras lúbricas, mas nunca suspeitei que ia encontrar um crime de sangue. Era disso que se tratava, sem dúvida. E tudo indicava que, apesar de alguns aspetos delirantes, o Marteladas era um indivíduo imputável. Tinha de ir à Polícia. Estava certo que, apesar de não dispor da folha de diário original, facilmente conseguiria que a Polícia se interessasse pelo provável homicídio perpetrado por ele.
Chamem-me a mim delirante, se quiserem, mas, por um momento, tive medo de uma improvável construção ficcional do Marteladas. Um lampejo fez-me temer que aquela mente desvairada tivesse arquitetado um episódio excitante na monotonia da sua vida. Recobrei rapidamente o bom senso e afastei a apreensão de um possível ridículo ao perceber que, nesta hipótese, fazia pouco sentido a folha arrancada. Ainda assim, antes de ir à Polícia, resolvi obter maiores certezas. Sabia da existência de algumas referências — o “bairro dos sinistrados”, as hortas junto à rotunda, o café do Sr. Manel —, e foi por este que comecei: se conhecia alguém com a alcunha de Marteladas e se se lembrava de um recontro dele com outros clientes, uns anos atrás.
Oh, esse já está engavetado há muito tempo. Então o senhor não se lembra? O tipo matou um desgraçado que ia à horta dele apanhar qualquer coisa para comer, em vez de andar aos caixotes. Coitado!
Inesperada, é o que posso dizer desta revelação. Andava eu com tantos pruridos, com tantas cautelas e, afinal, já estava tudo resolvido.
Ah, sim? Sabe, eu moro aqui há poucos anos. E como é que o apanharam?
Parece que foi ele que se entregou. Eu não sei bem a história, mas acho que foi isso que veio nos jornais.
Isto também não me pareceu normal. Todos os criminosos tentam esconder o crime para salvarem a pele e este entregou-se? Pelo Sr. Manel soube onde era a casa do Marteladas — que, vim a saber, se chamava Francisco Gomes —, onde a mulher continua a viver e para lá me dirigi, um pouco sem pensar.
A mulher recebeu-me com a típica farda das donas de casa — uma bata às florinhas miúdas. Sem nunca referir a questão do diário, apresentei-me como um conhecido do marido, dizendo que nos encontrávamos por aí, quando também eu andava ao metal, mas que tinha estado fora uns anos e que só agora tinha sabido da prisão dele.
Ele nunca lhe falou no Esteves?
Fez que não. Se desconfiou, não o manifestou. Mandou-me entrar, “para as vizinhas não darem fé”, e, às minhas perguntas orientadas, foi informando que o marido, depois de ter morto o homem, andava alterado.
E eu sem saber porquê. Não dormia, estava sempre irritado, achava que andava a ser vigiado. O que, pelos vistos, era verdade.
Ah, sim? — incitei.
Pois! A certa altura, recebeu uma carta anónima com insinuações sobre algo que essa pessoa sabia. O meu marido ficou desvairado. Tudo o que ele suspeitava se confirmava. Ficou muito tempo a pensar, tão impaciente que eu não lhe podia dizer nada. Andou a remexer nos papéis dele, a rasgar coisas. Depois foi à horta, mas não se demorou. Dias depois, outra carta. Era a confirmação da chantagem. Exigia cinco mil euros, senão denunciava-o à Polícia, sem nunca explicar o que sabia.
E, então, pagou? — perguntei genuinamente curioso.
O meu marido tinha lá cinco mil euros para dar assim! Se calhar, até arranjava, se pedisse uns adiantamentos, sei lá! Mas resolveu não pagar. Sabe, ele era muito reto. Isto que lhe estavam a fazer era tudo o que representava podridão para ele. Então, resolveu ir à Polícia com as cartas do chantagista, sem eu saber que era para se entregar. Não quis que a barafunda fosse aqui em casa.
Esta revelação não me apanhou completamente desprevenido. Pelo que tinha lido no diário, pareceu-me que ele tinha uma espécie de ética pessoal.
Em que prisão é que ele está?
Está em Pinheiro da Cruz. Mas acho que não fica lá muito tempo. Ele apanhou oito anos; já vê, a coisa não foi premeditada, aconteceu, e teve a atenuante de se ter entregado. Quando foi preso, foi um grande choque para mim, que não sabia de nada. Pensei que ia lá ficar para sempre, digamos assim. Até dei uma limpeza a fundo ali no escritório dele.
Posso ver? — apontei com o queixo para a direção que ela tinha indicado. — Só para saber se ele ainda gosta de livros esquisitos — sorri, atenuando a impertinência do pedido.
Gostar, gostava, mas deitei tudo fora. Aquelas palermices só lhe faziam mal. Qualquer dia está aí e, se calhar, ainda se vai zangar comigo por ter deitado aquilo fora.
Entrámos. Era uma marquise fechada com uma escrivaninha minúscula e uma cadeira. A parede tinha estantes de cima a baixo, organizadas em prateleiras temáticas. Ao nível dos olhos era a secção de divulgação científica: Sagan, Asimov, Gould, Dawkins, Clarke, e outros nomes menos conhecidos. À direita, ficção científica e policiais. À esquerda, seria a secção “arrumada” pela mulher: restavam uns títulos “esquisitos”, relacionados com religião e marianismo. As prateleiras cimeiras deviam corresponder a ciência, propriamente dita, onde identifiquei nomes como Galileu, Crick, Darwin, Freud, Jung. Surpreendi-me de ver História e Política a partilhar uma prateleira e de uma inteira com livros sobre Arte e outra com Poesia. Este Marteladas — não é fácil adaptar-me a Francisco Gomes, depois de o ter tratado tanto tempo pela alcunha — é um indivíduo surpreendente, pensei.
E o morto? Sempre era um que tinha tido uma rixa com ele, além no café? Contaram-me… — disse eu, cautelosamente, com medo de denunciar o pormenor do diário.
Não, veja lá! Era o vizinho aqui da cave. Então, se nós soubéssemos a miséria em que ele vivia não lhe tínhamos dado as hortaliças que quisesse? É a pobreza escondida. Olhe, tenho feito um esforço para tomar atenção a algum caso parecido que haja por aí. E já tenho dado aos vizinhos. Agora, sou eu que trato da horta, sabe? Temos que nos desenrascar, não é?
E o chantagista, apanharam-no?
Acho que não, mas preferia não falar muito disso. Nunca se sabe. O meu marido suspeitava de alguém que tem uma janela que dá lá para a horta. Mas ainda fica desviada. Não sei.
Despedi-me e prometi visitar o marido na prisão. Não só precisava de manter a coerência da minha história, como fiquei verdadeiramente curioso por conhecê-lo.
No dia seguinte, fui a Pinheiro da Cruz, armado de bloco de notas e minicâmara. E o último livro do João Magueijo, como prenda. O Marteladas tinha uma tez levemente sanguínea, nariz um pouco abatatado, era alto e bem constituído, aparentando menos idade do que os 63 anos declarados. Estranhou a minha visita, por não me conhecer, mas eu disse-lhe que era um jornalista do Correio da Manhã e que estava a organizar uma reportagem que reabilitasse a imagem de presos que tinham matado por acidente. Contou-me tudo o que eu já sabia mas, quando lhe falei no chantagista, baixou a cabeça a sorrir.
Só falo disso se for off the record — exigiu.
Anuí, claro. Do meu lado era tudo off the record.
Sabe, eu vi-me muito apertado com a pressão dos remorsos, que vinha somar-se à vida atarefada e de pouca qualidade que eu levava. Estava farto. E cansado. Só queria sossego e descanso, mas o que me tinha acontecido não me permitia nenhuma serenidade. Fui eu que escrevi as cartas. Eu queria vir para a prisão, queria cumprir pena, para me livrar dos remorsos. Queria deixar de calcorrear as ruas à procura de metal. Queria deixar de ouvir novelas. Queria entregar-me, mas queria deixar a minha mulher a pensar que eu não tinha outra saída. Então escrevi as cartas, só para ela ler. Nem as mostrei à Polícia. E tive sorte, muita sorte. Aqui, Pinheiro da Cruz, é uma colónia penal agrícola. Os campos anexos da prisão são um paraíso para alguém que gosta de trabalhos do campo, como eu. Estou bem.
A minha capacidade de adaptação não me permitia mais surpresas. Despedi-me. A última visão que tive dele foi a de um rosto em grande serenidade. Antes assim!

Joaquim Bispo
*
Imagem: António Dacosta, Episódio com um cão, 1941.
MNAC (Museu do Chiado)

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