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terça-feira, 16 de abril de 2019

Garrafas no jardim



Afundadas na terra. Plantadas entre avencas e coqueirinhos e samambaias. O vício escondido pelas folhas dos vasos. Tudo tão bem disfarçado que eu me pergunto como é que o braço paralisado de papai consegue dar conta de cavucar e enterrar cada garrafa. E são muitas. Um cemitério delas.
Mamãe acredita — com sua fé nos santos e nas rezas — que ele não bebe mais. E nem as frequentes idas ao jardim nem o cheiro permanente das pastilhas de hortelã a fazem pensar diferente. Ela não quer enxergar. Não aguenta mais saber.  E mente. Para que a gente possa respeitá-lo. Respeito? Raiva. De escutar ela repetindo que a força do Espírito Santo o curou. De testemunhar a impotência dessa negação passiva, dessa responsabilidade repassada ao divino. Como todos os que se recusam a ver, mamãe dá nomes diferentes à própria fraqueza. Abnegação. Companheirismo. Amor. Mas tudo o que eu vejo é uma mulher perdida que se alimenta da crença em promessas convenientes. E um simulacro de homem que promete qualquer coisa para estimular a ingenuidade dessa crença. Cúmplices. A que finge; o que esconde.
Há anos, ouço desculpas. Coerentes, incoerentes, inúteis. É assim que ele relaxa; Ele está comemorando; Com esse calor, quem é que aguenta? 
Aniversário Natal formatura dos filhos férias nascimento dos netos aposentadoria o time dele ganhou o campeonato ele está sem dinheiro um amigo dele morreu. E as quedas, os esquecimentos, a magreza excessiva, os olhos congestionados, o andar em ziguezague, os vômitos, os banhos frios. Tudo escondido dos filhos. Ou nem tanto.
Mamãe não se dá conta, mas faz tempo que somos parte da mentira. De tantas. De todas. Um cardápio:

  1. Ele exagera, mas aguenta. 
  2. Se ele fosse viciado, já tinha morrido. 
  3. Quem não toma seus porres na vida? 
  4. Alcoólatra é uma palavra muito forte. 
  5. Todo o mundo bate o carro uma vez ou outra. 
  6. Caiu porque o chão estava molhado. 
  7. Ele para de beber a hora que quiser. 
  8. Ele bebe pra se divertir. 
  9. Ele até que diminuiu. 
  10. Deixa ele em paz.

Daqui a um ano, papai vai morrer. De cirrose. Nós ainda não sabemos, mas estaremos lá quando acontecer. Mudos. Coniventes. Preocupados. Temos nossas próprias garrafas no jardim. 

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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


4 comentários:

saudades de escrever; saudades de a ler, a vc que escreve como se tivesse sido na sua pele. Um beijo, amigona

quase preto e branco. E os cinzentos... Muito bom.

Forte. Sei bem como é. Garrafas de pai escondidas no jardim. Me parece um texto depoimento. Visceral porém cheio de julgamentos.

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