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quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Sombras de carne


Lola limpou a boca no lençol, pouco se importando com o olhar magoado do rapaz ao seu lado. Aqueles encontros estavam começando a irritá-la. Rodrigo aparecia mais de uma vez por semana no Mercado Municipal, com um jeito desamparado de cachorro com fome, e ela acabava por ser deixar vencer pela piedade. Os olhos... Eram os olhos de Rodrigo que atraíam, prendiam. Não a boca, nem os gestos que não passavam de uma mão trêmula e gelada, e de um único grito abafado na hora do gozo. Seus olhos, no entanto, cuspiam sofrimento, escondiam algum segredo.
Havia entre os dois um comércio. Nada mais. Lola não gostava da demora do rapaz, do tempo arrastado que levava para gozar. Uma coisa tão simples essa de trepar, mas Rodrigo insistia em fazer de cada vez um ritual de afeto, como se estivessem num encontro. Ela já estivera com outros da idade dele, outros que se apaixonaram pelos seus seios e pelo seu sexo sem pelos, que a tocaram como gatos nervosos, desajeitados, arranhando, mordendo, se esfregando em sua pele lisa. Mas Rodrigo tinha aqueles olhos, só podia ser isso! E ela acabava por se deitar com ele novamente, rendendo-se a preliminares que não permitia a ninguém mais.
— Por que é que você limpou a boca? — o rapaz quis saber.
Sem lhe dar resposta, Lola enfiou o corpo carnudo debaixo do chuveiro. Ela tinha pressa. Sempre tinha. As coisas deveriam estar fervendo no mercado, e Xavier não gostava de ficar sozinho na banca. Reclamava da demora nas entregas e pedia a ela que não se ausentasse por tanto tempo. 
Não que desconfiasse dela. Não, isso nunca. Mas ficava desorientado quando a mulher não estava por perto para atender os fregueses. Embrulhava os queijos e as compotas no papel errado, amassava as frutas, e os fregueses só não iam embora por causa da amizade. Ela e Xavier mantinham a banca desde que tinham se casado, 18 anos antes. 
Dezoito anos atrás Rodrigo tinha três anos, pensou, se esquecendo do marido e do mercado. Mas logo afastou o pensamento e se concentrou no vaivém da toalha com que enxugava as costas.
Desde que Xavier tinha ficado doente, havia algum tempo, nunca mais fora o mesmo. Acabaram-se as brincadeiras prolongadas no colchão, o sexo em pé, atrás da porta, quando a urgência não permitia chegar ao quarto, e as fugas para os fundos da banca, onde se excitavam como adolescentes, escondidos atrás dos caixotes de fruta. Ela se acostumara, ano a ano, a fazer tudo com pressa. Não fosse aceitar aquela rapidez do marido, ficaria sem nada.
Traiu Xavier, pela primeira vez, seis anos antes. 
Um freguês perguntou se faziam entregas em domicílio e ela mesma se encarregou de ir levar as compras. Preferia que o marido ficasse na banca. Por mais desajeitado que fosse, Xavier era melhor do que ela nas contas, e havia ainda os fornecedores, com quem Lola preferia não ter que lidar. Quando chegou ao apartamento sofisticado, foi o próprio freguês quem lhe abriu a porta. Alto, com a pele clara e os cabelos escuros levemente ondulados, recendia a um perfume discreto, mas insinuante. Lola teve vontade, assim que o viu, de passear os dedos naquele peito largo. Deve ser bom deitar em cima dele depois do sexo, se pegou pensando. Depois, as mãos que se roçaram na entrega das compotas, o pacote que caiu, os dois corpos que se abaixaram juntos na tentativa de pegá-lo, e o perfume que se impregnou nos seus sentidos, roubando-lhe o juízo. Por fim, os olhos se provocaram. E os dois se completaram pela fome. Era assim que Lola gostava de se lembrar das coisas.
Fizeram sexo, ela e o homem do perfume suave, por quase um ano. Ele ia até a banca, encomendava os produtos e pedia que fossem entregues em sua casa. E a entrega se fazia no suor dos corpos apressados. Lola lhe fez uma exigência: que comprasse sempre muito. Aplicava, assim, ao amante e a si mesma, um mea culpa. Ambos pagavam, a seu modo, pelo que consumiam. 
Quando o amante parou de procurá-la, Lola percebeu que não sentia falta dele, mas das compras que fazia em abundância. E decidiu que era preciso repor o prejuízo. Da banca e do corpo. Um a um, foram surgindo outros fregueses. No princípio, ocasionais, induzidos pela boca pintada de Lola, que parecia a polpa das frutas que vendia. Mas, em poucos meses, o plantel que a solicitava era constante.
Assim que Xavier quis contratar um ajudante para ajudá-la com as entregas, ela se opôs: Desse jeito, o lucro vai-se embora!, afirmou. Aos 42 anos, Lola se rendia pela primeira vez em sua vida a um vício. Viciou-se não somente no sexo diversificado, mas na urgência, no desejo pelos corpos que aliviavam os seus tremores. Nenhum dos amantes dava trabalho. Nenhum deles fazia do sexo mais do que o prazer das línguas ansiosas, das penetrações que a invadiam com mais ou menos força. Aceitava o aperto nos seios, as bofetadas ocasionais que levava ou dava, a cavalgada e a posse animal. Recusava-se, apenas, a dentes que lhe marcassem o corpo que Xavier veria, cedo ou tarde; e aos beijos na boca, que se empenhava em reservar para o marido. Negava-se, também, a se deitar com menores, e com mais de um amante ao mesmo tempo. Afora essas rejeições, fazia pouco sexo com mulheres, porque sentia falta da penetração e dos fluidos.
O primeiro rapaz com quem fez sexo tinha uns 20 anos. Lembrava-se sempre dele e dos outros, de mesma idade. É impressionante como são desajeitados!, pensava, observando seus gestos durante a trepada. Como muitos deles não tinham dinheiro ou renda, comprometiam-se com a obrigação de levar pais e amigos à banca no mercado. Cumpriam direito o trato, com medo de perder Lola e ter que correr atrás das jovens cheias de espinhas e regras que os afastavam por pudor ou esperteza.
Rodrigo tinha ido à banca, pela primeira vez, num dia frio. Primeiro, ficou olhando para o chão, com timidez, mas no momento em que seu olhar cruzou com o dela, Lola percebeu a inquietação que havia naqueles olhos que fugiam de tudo. Chegando ao pequeno apartamento do rapaz para entregar as frutas e os doces, surpreendeu-se com a arrumação e o bom-gosto do lugar. E surpreendeu-se mais ainda quando Rodrigo lhe disse que morava sozinho. Fizeram um sexo ruim sobre a cama macia e larga, mas Lola não estava interessada nas habilidades de Rodrigo. Impressionava-se era com os gestos relutantes e respeitosos do rapaz. 
— Primeira vez? — perguntou, curiosa.
— Não, com certeza não. Mas, de uma certa maneira, sim.
Apesar de intrigada, Lola decidiu que já tinham conversado demais. Coitado, não bate bem das ideias, pensou enquanto saía do apartamento de Rodrigo, logo depois.
Agora, já eram cinco meses que o rapaz a procurava. Procurava sempre, em excesso. E Lola concordava em se deitar com ele por pena, curiosidade, culpa. Sim, era culpa aquele sentimento que sempre a levava a fazer coisas das quais se arrependia depois. Sentia-se culpada por não conseguir dar a Rodrigo o alívio que vira em outros homens, em outros rapazes como ele. Era o mesmo sentimento que a tomava quando percebia os olhares perdidos de Xavier, o cenho franzido, as mãos apertadas como se fossem dar socos no vazio, ou como se pensamentos absurdos lhe passassem pela cabeça.
Chega!, pensou contrariada, descendo com barulho as escadas do prédio de Rodrigo. Enquanto caminhava de volta ao mercado, decidiu que se livraria dele. Rodrigo não lhe fazia bem ao corpo nem aos pensamentos, que se aceleravam em hipóteses que ela não conseguia entender. 
Que se foda com os seus segredos!, decidiu, pouco antes de chegar à banca. Resolveu que seria aquela noite mesmo que o dispensaria. Xavier estava fora, num dos cursos para comerciantes que vivia fazendo, e ela teria tempo de sair e voltar sem ser vista. O marido não era homem de controlar os seus passos, mas ela preferia não ter que se explicar, para não ter que mentir. Orgulhava-se de pensar que não mentia para Xavier. Eu omito coisas dele, eu o engano, mas não minto para ele, repetia para si mesma quando a consciência teimava em vir à tona.
Aprontou-se rapidamente e borrifou nos pulsos e nas orelhas o perfume que usava diariamente. Em vez do táxi que inicialmente pensou em pedir, preferiu caminhar. A distância não era muita. 
A noite estava um pouco fria e a falta do agasalho fez com que seus mamilos se avolumassem sob o vestido de malha decotado. Prosseguiu a passo rápido, dando-se conta de onde estava apenas quando começou a ouvir algumas cantadas pesadas e assovios que a incomodaram. O atalho pela praia não tinha sido uma boa escolha. Percebeu, tarde demais, que atravessava uma das zonas de prostituição da cidade. Nos muros, as sombras dos corpos que faziam sexo não a assustavam tanto quanto os corpos que enxergava em carne e osso consumindo-se perto dos barcos, na areia, ou nos carros estacionados ao longo do meio-fio. Correu para afastar-se daquelas Lolas multiplicadas em trepadas rápidas, daqueles espelhos incômodos. Nervosa, se encostou nas grades de uma loja fechada e vomitou.
Pouco depois, retomou a caminhada com passos ainda mais rápidos. Virando a última esquina em frente ao porto, suspirou aliviada. Foi quando viu os dois corpos projetados numa parede mais à frente. Pensou em parar, em recuar, mas alguma coisa a atraiu, deixando-a excitada. Com tesão, procurou com pressas os próprios seios, apertando-os com força e sem parar. Devagar, gemendo baixo, aproximou-se mais e mais do muro que se contorcia. Queria ser parte daquele clímax.
Então, seus olhos se cruzaram com outros. Nos de Rodrigo, mais nenhum segredo. Nos de Xavier, o fogo que ela tinha perdido para sempre. 

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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


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