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segunda-feira, 20 de agosto de 2018

O FILHO DO SURDO

Nem o mais puro dos crendeiros poderia perceber que os raios que cruzaram os céus
da floresta significavam algo além de chuva próspera. Raios severos era desgrama,
rezava o senso comum e as matildes maldosas do fim de mundo nos cafundós daquele
pontinho insignificante onde sei lá nem sei. Chuva boa é o que não era.
Diziam que o diabo estava mandando mensagem.

– Maricota pariu um padre!

Gritos foram ouvidos entre trovões e peidos de horror. De fato, uma mulher se
estrebuchava de dor nos quartos, quando se deram os primeiros, segundos e terceiros
trovões de nuvens nenhumas sobre aquela insignificância de vida terrena. Ao quarto
trovão, que clareou o céu noturno, que fez desaparecer a lua e seus luares, que fez
a terra tremer, que fez espocar onda de três metros nas margens plácidas do rio largo,
afluentes e igarapés, que dizimou bichos maus nadadores, que confessou-se o inconfessável
pela iminência do Juízo Final, pariu-se a desgraça em forma de gente e choro, que fez
a parideira falecer no ato e o chão de terra e folha molhada receber de súbito carne
viva e gosmenta, onde lá ficou a berrar, até que um surdo caboclo errante viesse a perceber
que era hora de acudir um inocente.

E assim conta-se sobre o momento em que, enjeitado desde a prenhez, que depois por
circunstâncias do destino comandado por almas incautas, um anjo caído veio ao mundo.
Pois fora um ribeirinho surdo de nascença, que nada ouvia, portanto nada falava, quem
acolheu a posta de carne e berro, enterrou a parideira do jeito que pôde ali mesmo e
seguiu com o menino mata adentro, à procura de quem lhe desse guarida nessa vida de
nada a oferecer. Andou a esmo pela floresta já densa pelos caprichos geográficos,
foi dar com os costados numa aldeia, protegida por cercas vivas de vegetação hostil,
mas com um buraquinho entre galhos e espinhos, capaz de servir de passagem estreita
a um surdo e seu pedaço de ser, até encontrar uma mulher indígena de descendência goyá,
que disse em seu falar esquisito algo que o surdo entendeu, mais ou menos assim:

– Fala, homem. O que traz entre os trapos?

Nada de fala de volta. Talvez um grunhido ao erguer do recém-nascido, acompanhado de uma
expressão que valia mais que mil palavras.

 – Entendi, foi o que supostamente apreendera o surdo do som que se espargiu entre
aqueles beiços cor de urucum.

O surdo também fez que entendeu e levantou os braços, entregando sua oferenda aos desígnios
dos bons deuses daquela gente. Recebeu em troca um colar de dente de jacaré. O que seria
uma das esposas de um murumuxaua de uma suposta tribo extinta pegou nos braços a encomenda
considerada divina, acolheu em seu colo e deu as costas ao surdo, que baixou a cabeça,
fez sinal da cruz, deu meia-volta e sumiu no breu. Mal sabia a silvícola o que portava
nas suas mãos.

O menino ganhou acolhimento numa aldeia de Goyazes primitivos e denominação Membira Capanós, como se filho do surdo fosse. Mas o início da convivência foi tenso. Como a índia apresentou o achado, pensou-se que fosse caça. E decidiram assá-lo. Mas a sabedoria do pajé goyá cuidou de desfazer a intenção.

– Não se come caça filhote, disse ele em seu dialeto. Há que se engordarem suas carnes e tripas,
até que todos possam repartir a refeição mais robusta com justeza, concluiu com a hierarquia
que o tempo havia lhe conferido.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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