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quarta-feira, 20 de junho de 2018

TOLERÂNCIA

  Fizeram 70 anos de casados Dagmar e Décio.
  As filhas Desirré, Domitila e Dulce, genros,
netos, bisnetos, parentada próxima e distante,
amigos de longo e pouco tempo sopraram velinhas em torno
da mesa. Era um bolo exuberante, escoltado por uma legião
de brigadeiros, cajuzinhos, bem-casados e línguas de sogra.
  Juarez, o churrasqueiro da vila, cuidou de tirar retrato.
- Um sorriso, seu Décio! Tá todo mundo feliz.
  Décio não mexeu uma ruga.
  Dagmar caçoou.
- Se ele rir, a dentadura cai.
  Até o vira lata levantou as
orelhas, abanou o rabo. Dizem que riu.
  Décio permaneceu de cara amarrada.
  Desirré, a mais velha, insistiu.
- 70 anos, pai. Três filhas, três genros, onze netos,
seis bisnetos, um casal de tataranetos e um batalhão de amigos! Vida linda, pai!
  Silêncio.
  Juarez já servia saideiras de linguiças, lascas de alcatra e iniciava a sobremesa:
banana d´água na brasa com canela e açúcar. O cavaquinho chorava Noel, Ernesto,
Jacob e Pixinguinha, prenúncios que a cervejada e o domingo iam longe.
As bundas gordas rebolavam aos pélvis e passos de pretensos mestre salas,
as crianças faziam com bolas de guardanapo lances de Copa do Mundo.
E Décio seguia estatuado na cadeira de vime, mãos entrelaçadas, um polegar
se enrolando no outro, o único movimento muscular existente.
- Vô Décio, vem dançar o miudinho.
- Deixa ele, Michele. Se seu avô está mexendo o dedo
é porque está agradado da vida.
  Um dos genros quis ser simpático.
- Seu Décio! Conta pra gente: qual o segredo de tantos
anos de casamento?
- Zíper.
  Foi só o que disse. Nenhum sorriso. Apenas um gesto
do polegar grudado ao indicador, percorrendo a boca de
uma ponta a outra. E foi eloquente ao seu modo. Repetiu:
- Zíper.
  Dagmar interveio.
- É fechecler, Décio. Para com essa mania de modernidade.
  Zíper.

Enquanto dançava-se, cantava-se e gargalhava-se, pelas telas
da memória de Décio passava um filme mal editado e de tempo
embolado, fragmentos de más lembranças.

- Calça pescando siri? É casamento de nossa primogênita,
Décio. Está um perfeito tabaréu.
  Zíper.
- Se é para passar o sábado no turfe, que jogue num cavalo
que não manca.
  Zíper.
- Vem pra casa, Décio. Larga esse carteado. Seu neto vai nascer.
Tomara que não venha a sua cara.
  Zíper.
- Você não desligou o filtro, Décio. Encharcou a cozinha toda.
Pega logo esse rodo, vai.
  Zíper.
- Serão numa repartição pública sexta-feira? Tem sirigaita aí.
Essa sua cara de songamonga não me engana.
  Zíper.
- A comadre Odete descobriu que o Jandir tinha uma amante.
Despejou água fervendo no ouvido dele. Ouviu, Décio?
Estou avisando: já botei a chaleira pra ferver.
  Zíper.
- O dinheiro da feira está minguando. É jogo, cachaça ou mulher?
Ou tudo junto?
  Zíper.
- Sonhei casar Domitila com cadete das Agulhas Negras. Diz que está
de flerte com um cabo dos Bombeiros. Menina sem ambição.
Puxou ao pai.
  Zíper.
- Décio, quantas vezes?! Bisnaga de creme de barbear na pia dá nisso:
escovei os dentes com Bozzano.
  Zíper.
- Isso é hora de me incomodar? Vai dormir, Décio! Não tem nada
pra você entre as minhas pernas.
  Zíper.
- O papagaio fugiu pro vizinho e está lá gritando
palavrão. Foi você que ensinou, diacho.
  Zíper.
- O vizinho queria tirar satisfações com você. Eu é que fui lá resolver.
  Zíper.
- Até a vizinhança sabe que você é de fritar bolinho.
  Zíper.

  Uma passagem peculiar emergiu das entranhas de Décio. Lembrou de uma
decisão honrada há mais de 20 anos.
- A partir de agora, só falo com você em inglês, velha chata.
- Tá, maluco, Décio? Você nem sabe dizer gudimôrningui.
- O que quer dizer isso?
- “Bom dia”, seu burro.
- Então nem “bom dia” eu digo mais.
- E você lá dá “bom dia” pra alguém? Só se for pras suas vagabundas.
  Zíper.

  Quase dez da noite. O chorinho aquietou, o pandeiro sossegou, a brasa
esfriou, o que sobrou do bolo esfarelou. Despedidas emocionadas, palmas
para o casal.
- Faz um discurso, Décio, diz alguma coisa. Os parentes vieram
homenagear a gente.
  Ziper.

  Atordoado com a gentarada alegre daquele domingo,
Décio só se deitou para lá de meia noite. De pijama listrado,
posicionou-se rijo. Pés juntos, mãos sobre a barriga, dedos entrelaçados.
Olhou fixo para o teto. Dagmar ensaiava os primeiros roncos.
- Dagmar... acorda, Dagmar!
- Que diabo, Décio! Resolveu falar?! Agora?!
- Não gosto de baunilha.
- O quê?
- O glacê do bolo tinha gosto de baunilha.
- Deixa de ser ingrato, seu chato. Dulce confeitou o bolo com
tanto carinho.
- Muita baunilha. Enjoa.
- Ah, vai amolar o boi. Vai no banheiro, vomita a baunilha e vê
se desce junto pelo vaso.

  A duas quadras da casa dos pais, Desirré embalava o neto caçula
que teimava em não dormir, quando ouviu palmas no portão.
- Dona Desirré, acho bom a senhora ir até a vila agora.
Melhor ir rápido.
  Descalça, de camisola, sem penhoar, Desirré largou a criança com
o marido e correu. Até que paralisou. Uma pequena horda de enxeridos
se aglomerava na entrada da vila. Lá no fundo, luzes de ambulância,
polícia e rabecão piscavam um ar de festa que não havia. Desirré se
espremeu entre os curiosos, escapuliu esbaforida do cordão de isolamento
e viu um corpo enrolado num lençol sendo colocado no papa defunto.
Viu dois policiais examinando uma serra de cortar pão ensanguentada.
Viu outros dois policias retirando o pai de dentro da casa em direção
ao camburão. Tiveram a gentileza de não enfiar um velho de 96 anos na
caçamba. Sentaram o infeliz no banco da frente, algemado com as
mãos para trás. Desirré voou, rodou pela viatura, socando lataria e janelas
fechadas. Décio olhou para a filha sem mexer uma ruga. Desirré olhou
o pai e se desmilinguiu em câmera lenta. E bateu mãos
e testa no vidro. E gritou em silêncio. E babou de soluçar.
E se descabelou. E se entupiu de baba e coriza. E pranteou de engasgar.
E deixou cair o pivô da frente.
A sirene começou a tocar. Desirré se jogou no capô de braços abertos e
viu pelo para-brisa manchas no pijama listrado do pai. Sangue
ainda fresco, respingado no rosto craquelado e nos últimos fiapos brancos da careca.
Viu os olhos do velho Décio querendo dizer tudo. Mas, sem coragem ou sem vontade,
diziam nada.
  Zíper.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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