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sexta-feira, 20 de abril de 2018

I LOVE MY JOB

José Armindo Moreira da Motta foi visto almoçando com uma bela mulher, numa mesa de canto
do restaurante Volare, no centro do Rio de Janeiro. A voz passiva e a indefinição do sujeito
nesta vaga sentença ameniza a gravidade do fato. Vamos à verdade explícita: quem o viu foi
Maria Regina Gregori da Cunha, amiga de sua esposa Heloisa Bastos Moreira da Motta, que
não poupou tempo e saliva.

- Helô, não foi a primeira, nem a segunda, nem a terceira vez. Ele frequentemente almoça 
com essa pequena na mesma mesa.

Heloísa ouviu calada, um tanto por estupefação, outro tanto por não dar trelas a mexericos a
respeito de um marido tão austero, trabalhador, gentil, pai zeloso e provedor como José Armindo.
Embora tenha feito ouvidos de mercador às maledicências recorrentes de Maria Regina, também
não poupou os ouvidos do marido, quando chegou já tarde da noite.

- José, sempre espero você para jantar, não importa a hora. Faço o cabelo, visto um vestido 
sempre diferente, passo batom. Respeito sua dedicação e amor ao trabalho. Mas estou com uma
pulga atrás da orelha. 

- Eu sei, Helô. Admiro sua compreensão com a Royal. Mas que diabo de pulga seria essa?

José Armindo é Presidente da Unidade Brasil da Royal Breddell Propaganda, multinacional inglesa
que cuida da Comunicação e Relações Públicas de uma vasta carteira de anunciantes do Império
Britânico na América Latina. Poderoso esse Moreira da Motta. Conquistou a confiança de acionistas
e chefes londrinos, a quem devia gratidão pelo cargo, que exerce desde 1957. São quase cinco anos
de bons resultados e lucros mais do que suficientes para os gringos lhe admirarem e respeitarem.
Sua devoção incondicional à empresa e às liturgias da função é algo louvável pelos pares e superiores. Voltemos às pulgas de Heloísa, pois.

- José, um passarinho me contou que você anda almoçando com uma bela mulher. Mais jovem do 
que eu. Dizem até que é fina e elegante. 
- Helô, diga a esse seu passarinho para engolir um saco de alpiste a seco. 
- Ficou nervoso. Então é verdade.
- Pois é verdade. De fato, almoço pelos menos uma vez a cada quinze dias com a Sra. Áurea Lucia Smith. Faço questão de declinar nome e sobrenome desta senhora, com quem mantemos projetos comerciais para a Royal e para os clientes da Royal. 
- Mas como uma mulher é tão importante, a ponto de ocupar o tempo de um executivo tão graduado?
- Trata-se de uma rara exceção, Helô. Ela representa uma empresa parceira com muita competência, apesar do desdém que você mesmo exala ao se referir a uma mulher que trabalha.  
- Não se trata de desdém.
- Trata-se de pinimba. Trata-se do que a vida lhe ensinou, além de bordados, prendas domésticas, 
etiqueta, disposição de talheres e francês fluente. Está surgindo uma leve tendência no mundo dos 
negócios. Há algumas mulheres diferentes, que trabalham e não esperam maridos para jantar. 
Lamento por dizer isso. 
- Duvido que a moda pegue. Mulher decente não abandona o lar.
- Pois fique sabendo: são tão talentosas na profissão quanto você é dedicada ao ofício da administração da nossa casa.
- Obrigado.
- Você sabe que sempre prefiro você, do jeito que você é. Não aceitaria uma esposa que fosse diferente. Gosto de chegar em casa e sentir sua doçura. 
- Eu sei que você me tem como esteio da nossa família, o que muito me honra.
- Pois, honre-se. O que se trata no momento é crer ou não crer que um marido como eu esteja à mercê de comentários de passarinhos, quando almoça com uma parceira de trabalho.
- Você sempre tem um jeito de me convencer.
- Sou assim mesmo. Não que a persuasão faça parte do meu dia a dia na propaganda, mas quero lhe deixar à vontade para escolher entre acreditar em mim ou no que é mal dito sobre mim.

Madá, a copeira, trouxe a sopa. Só dois pratos, as filhas já haviam se recolhido. O casal fez o sinal
da cruz, orou agradecido pela refeição e iniciou o jantar, que se deu em quase silêncio. Heloisa ainda
ouviu do marido o convite para conhecer a Sra. Áurea.

- Não carece, meu marido.

Helô teve medo estreitar relacionamento com uma mulher diferente de si mesma. Talvez fosse acometida de inveja. Talvez quisesse não chacoalhar o cômodo ritual de esperar o marido provedor,
a hora que fosse, bem arrumada, cheirosa e prestimosa. Talvez não quisesse saber mais o que as aparências diziam. Talvez fosse conveniente acreditar no bom marido.

Dia seguinte, à mesa num canto do Volare, Moreira da Motta e a Sra. Áurea marcavam presença.

- Ora veja, minha esposa ouviu fofocas sobre nossos almoços frequentes.
- Que tolice.
- Entendo. Faz parte da sua criação desconfiar de maridos almoçando com outras senhoras. 
Assim como faz parte dos bons costumes esperar o marido para jantar, a hora que for. Ainda 
mais um marido assoberbado pelo trabalho, bem sabe você.
- Concordo. Mas não deixa de ser uma tolice.
- Claro. Nunca faltou nada à minha esposa e à minha família, nada faria que lhes faltasse. 
Mas mudando de assunto...
- Isso. Negócios. Vamos aos negócios.
- Mr. Breddell chega nesta quarta para uma semana de auditoria da filial.
- E você está preocupado?
- Neca de pitibiribas. Apenas me pediu para providenciar com você uma de suas garotas. 
- Alguma preferência?
- Sim. Diz que gostou muito da moreninha da última vez.
- A Dominique?
- Acho que é esse nome. O gringo ficou doido com a dedicação da menina. Disse que no auge 
das quenturas do amor gritava “I love my job, I love my job...”

Os dois caíram numa gargalhada contagiante. Aos poucos, retomaram a conversa.

- Dominique é uma das minhas melhores. Nunca lhe ofereci?
- Nem quero. Mr. Breddell não me perdoaria. 

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
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