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segunda-feira, 20 de novembro de 2017

DEPOIS DE ZULEIKA MORTA

O Professor Stênio aboletou-se na casa da filha tão logo se deu o sepultamento da esposa 
Zuleika. Não perguntou se podia ou não podia. Lucinha também não refletiu se poderia ou não poderia hospedar para sempre o pai viúvo. Jamil, o marido de Lucinha não foi ouvido, o que não 
faria diferença, porque voz ativa era coisa que lhe faltava. O neto único de Stênio, Jorginho, murmurou “hurra!”, pois, a ausência da avó seria preenchida por um avô daqueles de contar causos de verdades duvidosas, desfiar invencionices e charlar sobre bondes, Avenida Central e  Maracanã.

Nascia assim um novo arranjo de família. Pode-se dizer que Lucinha ganhou o pai novamente. 
Que Jamil ganhou mais um vivente que não lhe dava a menor importância. E que o adolescente 
de buço e mãos permanentes entre as pernas ganhara um irmão mais velho. Havia também na casa Maria das Graças que ganhava na mesa mais um comensal de suas delícias de forno e fogão. 

A falecida Zuleika: êta mulher enérgica. Não morava tão perto da filha no Rio Comprido, mas 
uma hora de bonde diariamente era suficiente para manter a pequena família sob seus cordéis, azucrinando a todos com o que já era sabido e vivido:
- Esse seu marido é uma banana. Um homem de fritar bolinho.

Lucinha engolia as intromissões por conveniência, mas virava onça quando a velha falava do filho.
- Esse menino diz que quer se médico. Mas nunca o vejo estudando. Vive com a mão no pinto, 
vai ver descobrindo a anatomia. Está na hora de fazer alguma coisa de útil.
- Meta-se com o pinto do seu marido, minha mãe!
- Aquilo, minha filha, é um gato de armazém. Vive dormindo em cima do saco. 
- Que chulo, Deus me perdoe ouvir isso.

E seguia-se um sinal da cruz.
Zuleika não tinha papas na língua. Seu definhamento fora providencial. Lucinha se libertava aos 
pouquinhos da mãe, sem que os grilhões da culpa de filha única fossem rompidos. Esmerou-se em cuidados com a moribunda até o último suspiro. 
Os primeiros momentos do luto foram chorosos e silenciosos. Mas o remorso veio a cavalo. 
Lucinha sentia que poderia ter feito mais pela mãe e ter tido menos impaciência com as bisbilhotices 
da matriarca.  
- Por que a chamei tanto de velha cacete? Por que, minha Nossa Senhora dos Arrependidos?

De nada adiantava recorrer à memória dos maus momentos, das chaturas e do nariz em pé. 
De nada servia lembrar das bengaladas que a velha distribuía na cama hospitalar montada em 
casa, relutando contra paliativos e rostos compadecidos de parentes que resolveram se despedir 
ou ao menos se certificar que Zuleika estaria partindo, padecendo como, segundo muitos, bem merecia.
- Eu não quero ver a cara urubulina da Cotinha. Ponha esta mulher daqui para fora.

O neto não entendia bem o que estava acontecendo. Achava que era tísica e que a penicilina resolveria. Sempre a visitava no cair da tarde, depois do colégio. Tinha um carinho cerimonioso 
pela avó, que o tratava como se fosse um filho. Ou um idiota de penugem no buço.
- Menino, tira essa mão de dentro da calça. Até no quarto de uma doente não perde essa mania.  
Vai nascer cabelo nos dedos.

Jorginho achava graça da rabugice da avó. E nos quadris insinuantes da enfermeira. Lembrava 
que o avô sempre lhe alertava para não se lambuzar de catarro da bexiga, coisa que só extraía na calada do banheiro e imerso em pensamentos delirantes pelo que escondiam aqueles quadris. 
Jamil era indiferente à moléstia avassaladora da sogra. Torcia por um breve desfecho, ah, com 
toda certeza. Em nada ajudava a mulher que se desdobrava em providências, compras de panos 
para fraldas, seringas, soros, balões de oxigênio e lotes de morfina, reuniões com os médicos, encontros secretos com Dr. Rodolfo, o clínico da família, que dispunha à Lucinha ombros, 
abraços e outros acolhimentos inconfessáveis.  Pouco Jamil falava com o filho que se esvaía em homenagens à enfermeira. Nunca se dirigia ao sogro, que assim como a esposa, 
o considerava um exemplar borra-botas. Jamil chegava da repartição cartorial pontualmente 
às 18 horas e mergulhava os ouvidos na Rádio Nacional. Jantava em silêncio e depois do 
Repórter Esso já babava na poltrona.

Quando se deu o óbito de Dona Zuleika, só Maria das Graças chorou. 
Stênio providenciou um funeral de primeira, resgatando a tradição de cavalos de penacho 
roxo puxando o coche envidraçado pelas ruas do Catumbi. Houve marcha fúnebre, coroas, 
rezas, homens com chapéu na mão e semblantes circunspectos sob véus pretos.
- Não sei por que papai vendeu a chácara na Ilha do Governador para comprar esse jazigo de 
granito com esse anjo de bronze. Coisa mais exibida. 

Na descida do caixão, os sentimentos de Lucinha não eram de saudade. 
O fim da enfermidade de Zuleika se dera como esperado. Cotinha exultou o rosto sereno da 
defunta, no que concordaram as outras comadres. 
- Deve estar feliz por se livrar de tanto traste em volta.

Na mesma noite, Stênio apareceu com a mudança. Três malas. Duas de roupas, uma só de livros. Deixava para trás a casa em São Cristóvão, onde já tinha tratado de alugar, a preço módico e
porteira fechada, a uma família aparentada distante. Stênio acomodou-se, sem pedir licença, 
no último quarto vazio do casarão do Rio Comprido. Precisava do convívio, mesmo que 
sorumbático, da família de Lucinha.

No jantar do dia fúnebre, Maria das Graças serviu galinha assada com batatas coradas, arroz de 
forno, farofa de miúdos e azeitona.
- Receita de Dona Zuleika.

Ninguém entendeu – ou quis entender – a homenagem da cozinheira. Todos se fartaram de chupar ossinhos e Stênio ensaiou um discurso com prenúncios de verborragia infinita.
- Que a memória de nossa Zuleika esteja presente nessa casa...

Não terminou a frase. 
- Nos poupe, papai. Deixe a mamãe em paz.

E todos se recolheram sem dar mais um pio. 
E assim o luto foi se dissipando, cada um com seu jeito de lidar com a morte. Apesar dos altos e baixos de Lucinha, a vida entrava nos eixos – o que se há de fazer? -, como se um alívio restaurador tivesse substituído as agruras de uma doença perversa.

Passado mais de ano, tudo seguia na normalidade imposta pelos novos tempos, em particular pela presença espaçosa do viúvo. Havia sinais de novas rotinas.  
- Das Dores, minha filha, com o perdão do trocadilho: essa sua rabada é dos deuses. 
- Modos, papai. Todo jantar uma troça?

Novos hábitos se sucediam. Um aparelho Gillete Monotech passeava dia sim dia não ao redor 
da boca, pelo queixo e bochechas de Jorginho. Mais raparigo e sabedor da doença da 
avó, concentrou-se no exame para a Escola de Medicina: resolveu ser oncologista. Jamil não
deixou de ser o macambúzio de sempre, mas passou a dar bom dia, boa tarde e boa noite, e a tecer 
elogios entusiasmados às receitas de Dona Zuleika, que Das Graças servia a todo jantar. 
Nem babava mais na poltrona. Mesmo sem sucesso, animava-se em procurar Lucinha sob 
os lençóis.

Certa noite, o rapazola insone levantou da cama. Avançada madrugada, passou serelepe pelo 
filtro de barro na cozinha e ao primeiro gole percebeu um vulto se esgueirando no quintal. 
Quase borrou-se.
- Quem está aí?

O vulto desapareceu por trás do tronco da mangueira. Jorginho insistiu trêmulo.
- Quem está aí?

Quem estava disposto a prestar exame para Escola de Medicina deveria estar preparado para 
os sustos da vida. E assim, entre peidos nervosos e mãos suadas, Jorginho chegou de mansinho 
ao centro do quintal, onde uma única árvore se postava equidistante entre o casarão e as 
dependências de serviço. 
- Sou eu. Seu avô.
- A essa hora?
- Desde que Zuleika morreu, não tenho um sono inteiro. Chegue aqui perto. Olhe o céu como 
está estrelado.
- O senhor acredita que vovó virou uma estrelinha?
- Talvez. Converso com ela, quando as nuvens deixam. Tenho coisas a dizer que não foram ditas.

Os dois se juntaram mais ainda num abraço cúmplice. Olhavam para o céu. 
- Como estudante das ciências, não deveria estar fazendo essa pergunta. Mas qual delas é a velha Zuleika?
- Agora não sei mais. Ela aparece e desaparece.
- Como assim?
- Mistérios de Dona Zuleika. Agora, vejo estrelas solitárias vivinhas da silva. 
- Eu também, vô! Aquele ali, aquele ali é o Garrincha, não é?
- Isso. Mais atrás o Didi e o Nilton Santos.
- Claro. As estrelas solitárias que nos conduzem.  
- Guarde bem esses nomes, Jorginho. Olhe bem para eles. Ano que vem tem Copa do Mundo na Suécia. Dessa vez, vai. Eu sei que vai. 

O encanto de avô e neto abraçados no quintal foi percebido por Jamil, que ao abrir sorrateiro 
a porta da cozinha para o quintal, tremeu-se e deu meia volta. Foi tão rápido quanto desapercebido.
Stênio e Jorginho voltaram abraçados a seus quartos. Despediram-se com fervor. Jamil chegou esbaforido na cama, onde Lucinha dormia como um prego de barriga para cima, rígida, mãos cruzadas, como se imitasse a mãe morta. Ela agora estava com essa mania. 

Entre novas manias, contemplações noturnas, silêncios, eloquências inesperadas, hábitos estranhos 
e jantares soberbos, a vida trilhava seu curso. Até que num fim de uma tarde, Lucinha deu a notícia:
- Maria das Graças foi embora.

Não fosse um acesso de tosse de Jamil, o silêncio seria total.
- Alegou a moça que precisava voltar para a Bahia. Saudade da mãe. Disse que temia não a ver mais, conforme se deu com mamãe.
- Você deixou, mãe?
- Não só deixei, como acertei suas contas e lhe paguei passagem de ônibus. A essa hora deve estar para lá de Magé. Mas não se preocupem. Amanhã mesmo Tia Cotinha vai mandar uma substituta. 
E Das Graças deixou um bobó na panela.

O jantar foi degustado sem prazer nem palavras. Seguiu-se um caminhar cabisbaixo cada um para 
seu canto. Nem Repórter Esso foi visto naquela noite. Muito menos as estrelas.

Cinco ou seis meses depois, numa manhã de sábado, o carteiro apareceu com três envelopes. 
Para o Professor Stênio, para o Senhor Jamil e para o “Doutor” Jorginho. Por sorte, todos 
estavam em casa, menos Lucinha: dia de feira. 
Estranharam os três os envelopes, principalmente pela ausência de remetente. Mas o selo com carimbo de Salvador – BA os fez tremer. Partiram para longe um do outro e às escondidas 
abriram a correspondência. Não havia palavras. Apenas uma fotografia em preto e branco de 
uma pessoa sorridente, sestrosa e conhecida. Nua. Frontalmente nua, no pé de um coqueiro. 
Cabelos castanhos fartos em caracóis, corpo moreno, ancas bem moldadas, mamilos rijos escurecidos, densos pelos no triângulo abaixo do umbigo. E sob o ventre, mãos entrelaçadas amparavam uma proeminência visível como uma melancia, de uns cinco ou seis meses crescentes. 
- Retratista, capricha na fotografia. É pra mandar pra gente que bem me quer.

O recado estava dado. 
Jamil queimou o retrato e jogou o que restou no vaso sanitário. Espalhou alfazema no banheiro 
para disfarçar o cheiro de papel queimado. Arrumou-se de qualquer jeito e partiu em desespero 
para o armazém, onde comprou chumbinho de matar rato. Jorginho escondeu a foto entre a
coleção secreta de revistas de desenhos de amores explícitos. Só para matar saudade.
O Professor Stênio vestiu colete, gravata e paletó, em cujo bolso escondeu a fotografia. Pegou 
o bonde rumo ao cemitério do Catumbi. Ao chegar lá, comprou flores e dirigiu-se ao jazigo 
de Zuleika. Dispôs a foto da Maria das Graças nua nos pés do anjo de bronze, ajoelhou-se, 
rezou um Pai Nosso, uma Ave Maria e encerrou as orações:
- Gato de armazém é a puta que te pariu. Amém. 

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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