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quinta-feira, 26 de outubro de 2017

A mulher que a gente quer ser



A gente que é mulher quer ser um mundo de coisas (astronauta, arqueóloga, estudante, artista, freira, presidente, estrela). A gente sabe que pode e gosta de ser tudo quanto é treco junto. A gente é forte, tem um plus a mais excedente extra multiplicado. A gente é muito, um tudo a gente é.
Então por que tantas vozes, quase o planeta todo, as galáxias inteiras entoam, insistem que a gente só é, só pode querer ser mulher? E por que tantas famílias, feudos, igrejas, nações, árbitros, reinados, gerações, acordos, dinastias, estatutos, tantos universos ficam zombando da gente, diminuindo essa competência, esse poder de ser tanto, muito mais? Virou mania, hábito ruim, vício dos infernos encher o peito, engrossar a voz, apontar o porrete pra gente dizendo que a gente é nada, a gente é só mulher. Que ângulo miúdo, redução descabida, que miséria de interpretação pra gente, meu Deus!
Quase terceira década do século XXI, tanto drone, androide, cada sistema tecnológico sinistro, artifícios, prótese cardíaca, clone, tribuna virtual, a ciência reproduzindo coelhos e informações em nuvens, e a gente ainda sendo desrespeitada, e nossa fala mimimizada. E a gente vem de uma luta do sempre, desde a tetravó, hecatovó, desde que nasceu com vagina (e com clitóris, esse sujeito incompreendido), desde que menstruou, pariu, ganhou ruga — luta que vai continuar depois do nome tinto na lápide. A gente pelejando, com delicadeza ou ira, elencando argumento contra o preconceito, contra a violência doméstica, contra o desgaste da tripla jornada de trabalho, a desigualdade salarial, as cantadas rasteiras, a indiferença, contra o estupro e a culpa que impõem à estuprada, contra a impunidade, a fofoca, contra os padrões estéticos, contra os odiosos manterrupting, bropriating, gaslighting e todas essas violências de gênero até ontem sem nome, mas que se repetem há eras.
Ano 2017 depois de Cristo Jesus (filho de Maria, aquela que foi o sacrário vivo, Mãe de Deus e nossa), e a gente aqui desenhando que as tarefas domésticas precisam ser divididas, os cuidados com os filhos devem ser compartilhados, que a gente tem direito ao lazer, ao estudo e ao trabalho digno, que a gente é dona do próprio corpo e não deve ser apenada por envelhecer. Ah, que canseira! A gente querendo registrar a verdade da gente, mas tendo de escrever tudo ligeiro, porque a gente não pode parar nunca. E a gente pelejando pra ser agente da própria liberdade transformadora, a gente desejando decidir a mulher que a gente quer ser.

Manterrupting: Quando um homem interrompe uma mulher constantemente, de maneira desnecessária, não permitindo que ela consiga concluir sua frase.
Bropriating: Quando um homem se apropria da mesma ideia já expressa por uma mulher, levando os créditos por ela.
Gaslighting: Abuso psicológico que leva a mulher a achar que enlouqueceu ou está equivocada sobre um assunto, sendo que está originalmente certa. É um jeito de fazer a mulher duvidar do seu senso de percepção, raciocínio, memórias e sanidade.

Definições: http://movimentomulher360.com.br/2016/11/mm360-explica-os-termos-gaslighting-mansplaining-bropriating-e-manterrupting/



Maria Amélia Elói, crônica publicada na antologia Mulherio das Letras - Contos & Crônicas, volume 3, Ed. Mariposa Cartonera.



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