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sábado, 20 de maio de 2017

Pequenos Cuidados


Eu sempre gostei de cortar a unha do Nildinho. A unha do pé, do dedão do pé. 
Só eu cortava a unha dele. 

A gente começou a namorar cedo, eu era de menor, mas ele não me respeitou não. 
Um dia foi logo levantando a minha saia e eu senti uma coisa enorme entrando 
dentro de mim. Eu gostei. Senti uma dorzinha gostosa, e depois daquele dia no 
muro escuro atrás de igreja, fiquei com vontade de Nildinho entrando dentro de mim. 
Não tinha dor mais não, mas tinha um gostoso que ficava cada vez mais gostoso. 

Umas três vezes por semana a gente se encontrava à noite no muro atrás da igreja. 
Até que alguém viu, acho que foi o padre, e contou para meu pai. Ele virou o diabo. 
Disse que dava coça em Nildinho se ele não casasse comigo. 

Nildinho era bom coração, trabalhava no mercado, levando e trazendo caixa. 
Merecia um trabalho melhor, porque era muito inteligente. Nildinho acho que gostava 
de mim. Não precisou levar coça do meu pai e casamos na mesma igreja onde tinha o 
muro da gostosura, como nós mesmos apelidamos o muro. 

Meu pai tinha um dinheirinho guardado e fez festa bonita. Com bandeirinha, bolo, 
pastel, leitoa assada, cerveja e sanfona. E ainda sobrou troco pra gente passar 
dois dias na praia na raiz da serra. Foram os melhores dois dias da minha vida. 
A gente não fazia mais gostosura em pé, escorada no muro, mas tinha uma cama de 
lençol que a gente se deitava e passava o dia todo na saliência. Nem saímos para 
a praia. Aquela coisa gostosa do Nildinho entrava por todos os meus buracos e eu 
me senti a mulher mais feliz do mundo. 

Numa dessas vezes em que a gente virava o corpo em cima do outro, passando a língua 
em tudo quanto é canto, eu notei que a unha do pé do Nildinho estava muito grande. 
Era uma unha meio virada para cima, que me arranhava as canelas que nem cachorro quando 
a gente chega em casa. Eu falei: “Corta essa unha, Nilsinho”.  
Ele disse: “Para de falar e se concentra”. 

Depois que a gostosura foi lá em cima e jogou a gente cansado pro lado, eu voltei 
ao assunto: “Nilsinho, corta essa unha do dedão. ” Ele falou que nem menino sestroso: 
“Não sei cortar unha não, filha. ” Eu falei: “Então eu corto”. 

O homem da pensão me emprestou uma tesourinha e eu cortei unha do Nildinho. 
Ele fechou os olhos e sorriu. Parecia que estava sentindo gostosura. Enquanto eu cortava, 
ele passava a mão no meu cabelo fazendo carinho. 

A gente foi morar num puxadinho na casa do meu pai e da minha mãe. Minhas irmãs menores 
me ajudavam na casa, enquanto Nildinho trabalhava entregando caixa do mercado. De noite, 
com mais precisão, toda noite, Nildinho e eu fazíamos gostosura. Ô homem bom, ô coisa boa. 

Acho que de tanto levantar e levar caixa de coisa da venda ele ficou um mulatão forte e 
cheio de vontade de fazer gostosura. E como sempre, pelo menos uma vez por semana, 
eu cortava a unha do dedão do pé dele. E ele se enroscava quem nem gato, só faltava 
miar de felicidade. 

A vida foi passando e nada foi mudando, até que embarriguei. Veio uma menina linda. 
E não podia ser diferente: filha de tanta gostosura só podia ser linda. Demos o nome de 
Rosynilda. Rosy porque eu era Rosy e Nilda porque ele era Nildo. 

A vida foi melhorando. Nildinho virou balconista e a gente aumentou o puxadinho. 

Até que veio tragédia. Estava muito bom para ser tão bom. Meus pais morreram no 
ônibus que capotou na romaria para Nossa Senhora de Aparecida. Chorei muito. 
Saí carregada do enterro, perguntei a Deus “por que ele tinha feito isso comigo?” 
e perdi um sapato. 

A gente ficou com Rosynilda e minha irmãs para criar.  Foi para mais de mês sem 
gostosura e a unha do pé do Nildinho crescendo. Mas depois do luto, o tempo fez carinho 
na gente. Fomos morar na casa do pai e da mãe, e Nildinho até ganhou aumento de tanto 
que vendia na venda. Ele era inteligente e de boa prosa. Logo depois, diminuindo o trauma, 
a gente voltou para as gostosuras. E veio nosso menino: Nildo Junior. Um fofo e sorridente 
igual ao pai. E de tanto fazer coisa gostosa no meio do resguardo, menos de um ano, pimba: 
Rosynilda 2, que para não ficar igual à irmã, batizamos de Rosynilda Maria, que era o nome 
da minha mãe. Meu falecido pai Geraldo ficou sem neto para receber homenagem porque fiz 
ligadura no Posto de Saúde. 

Eu já estava ficando meio cansada para cuidar de tanta criança, mesmo que minhas irmãs 
já fossem mocinhas. E boas mocinhas. Estudiosas e ainda ajudavam na casa. Nildinho gostava 
delas. A única preocupação que eu tinha era com o muro atrás da igreja. Mesmo sem queixa 
da vida eu não queria que elas conhecessem gostosura antes do tempo. Não é toda mulher que 
tinha a sorte de ter um Nildinho. Tem muito homem safado por aí. Nildinho era bom marido e 
muito carinhoso comigo, principalmente quando eu cortava a unha dele. Ele dizia: 
“Filha, chegou a hora daquele carinho. O dedão tá furando a meia”. Na mesinha de cabeceira, 
eu guardava a tesourinha que o homem da pensão emprestou pra mim e nunca devolvi. 

Já se passaram tantos anos e aquele momento depois da gostosura de sexta feira já tinha 
virado agrado obrigatório. Eu gostava muito de satisfazer o homem que me fazia gostosura 
e ele gostava do jeito que segurava seu dedão e ia plec plec passando a tesourinha com 
muito cuidado. A gente não se falava, mas sentia que um agradecia ao outro por estar junto 
tanto tempo. Ele até fechava os olhos, baixava a cabeça, segurava as mãos. 
Parecia que estava na missa.

Um fim de tarde eu estava no tanque torcendo roupa, quando o ajudante do padre apareceu 
no lusco fusco. Avisou: “Dona Rosy, vai lá no muro da igreja." Não entendi bem, mas alguma 
coisa empurrou minhas canelas pra correr pra lá. Fui descalça, de pano na cabeça. 
Quando fui me aproximando, já estava escuro e minhas pernas bambearam. Parecia assombração 
se mexendo encostada no muro. Fiz o sinal da cruz e mais uma vez uma força do diabo me 
empurrou pra mais perto. Dei um grito. Nildinho estava fazendo gostosura com 
minha irmã mais velha.

Hoje, depois de mais de dois anos, acho que já estou refeita. Ainda me lembro que na hora 
arranquei um pau de cerca para bater nos dois, mas o padre apareceu e disse para eu não 
fazer isso, menina, e que Deus iria castigar os pecadores. Castigou nada. Nildinho falou 
na minha cara que estava apaixonado pela minha irmã e ela confirmou que estava 
apaixonada também. Fiquei estonteada. Só sei que naquela mesma noite os dois 
arrumaram as trouxas e fugiram. 

Nildinho largou a venda, minha irmã largou a escola e as coisas dela lá em casa, 
e ainda me deixaram os dois com uma irmã e três filhos para criar. Sumiram. 
O dono da venda ficou com pena de mim e arrumou de eu ser balconista. Fiquei muito 
magoada e mais uma vez senti que Deus faltou comigo.

Fui levando a vida com dor danada dentro do peito, mas com uma força endiabrada nas 
canelas para fazer coisas e criar minha irmã e meus filhos. Sozinha, nem com Deus eu 
contava mais. As crianças foram crescendo e ajudando na casa. Nunca mais souberam do cunhado, 
da tia, da irmã e do pai. A Comadre Damaris era a única companhia que eu tinha. Dia sim, 
dia não, ia lá em casa para saber seu eu estava precisada de alguma necessidade e eu sempre 
agradecia e dizia que amizade dela era de bom valor. Ela me servia chá que carqueja, quando 
via que eu estava magra e triste além da conta. E repetia: “Já faz tanto tempo, Comadre Rosy. 
Ninguém merece a sua tristeza. ”

Dia desses deixei os filhos em casa e desci a raiz da serra até a praia. Eu não queria ir, 
porque nem queria saber se ainda existia aquela pensão que pela primeira vez eu e Nildinho 
fizemos gostosura deitado, mas a comadre insistiu, disse que mesmo triste eu era jovem, 
e precisava conhecer novos ares e me distrair. Assim que descemos do ônibus, senti aquele cheiro 
de churrasquinho e cerveja derramada na calçada. De longe, ouvi um pagode. 
Damaris me animou: “Vamos, Comadre Rosy, deixa a vida te levar...”

Aí eu fui, né? Fui com meus próprios pés, a Comadre Damaris nem precisou me puxar. 
E fui requebrando, porque de um pagode até que gostava quando era feliz. E quando 
fui chegando na rodinha, vi minha irmã mais velha, já carcomida, bunda grande e aquelas 
bolotinhas na coxa que as pessoas chamam de celilite, requebrando no meio dos homens. 
Que vergonha, tão desfrutável virou a minha irmã. Mas meus olhos foram teimosos. 
De tocaia, parei para ver aquela cena toda com dor no coração. E fui olhando quem estava 
em volta. E sabe quem estava no pandeiro, todo bobo com aquele requebro? Isso mesmo. 
Nildinho. Barrigudo, cara de encachaçado e sem dente na frente. Segurei a mão da Comadre 
Damaris e ela, quando viu a besteira que fez em me levar para praia, perguntou se eu queria 
ir embora. Eu disse: “Não." 

Olhei Nildinho de cima para baixo. Ele não me viu. Mas eu vi. 
Na chinela velha, vi suas unhas. As do dedão estavam enormes e coscorentas. 
Acho que minha irmã não sabe cuidar dele.  



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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
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