Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Um cadáver em cima da mesa

Lindauro achava que eu era boba, mas não sou boba não. Esse meu jeito quietinho,
boca fechada que não entra mosca, bico calado, cabeça baixa e olho que não enxerga
é coisa pensada, que guardo só para mim. Mas ele nunca tinha provado da minha
vingança. Bobo é ele, que achava que indecência não tinha limite.

Nos primeiros três meses de casamento, descobri as gostosuras do único homem que
entrou no meu corpo e no meu coração, mas como disse, durou só três meses, logo
a gente enjoou. Ele era meio brutamontes na cama. No princípio até achei gostoso,
mas sentia falta de carinho e de algumas variedades que as vizinhas diziam que os
maridos faziam com elas. Variedades que sempre esperei que Lindauro me oferecesse,
mas ele, não, queria logo enfiar aquele jacarandá entre as minhas pernas, e vez ou
outra me mandava virar de bruços e foi aí que fui me desencantando, só dor.

Lá pelo sexto mês do casamento, ele me procurava uma vez em cada vinte dias e olhe lá.
Passei a desconfiar que ele andava pulando a cerca, mas, como eu disse, com meu jeito
boca fechada não entra mosca fui levando a vidinha com alguma esperança de que as
coisas podiam se ajeitar de novo. Ele comparecia com dinheiro para tocar a casa e
eu tocava a casa com o dinheiro dele. Dizia que eu não precisava trabalhar fora e eu
que não sou boba baixava a cabeça. Assim era o trato, sem conversa, sem um reclamar do
outro. Filhos? Nunca falamos sobre isso. Acho que até seria bom para me ocupar, mas
eu não queria filho de pai bêbado.

Justiça seja feita, ele era respeitador, me tratava com certo carinho e dizia que
gostava de mim. Nunca me bateu. Eu também nunca dei motivo para ele me levantar a
voz ou me sentar a mão.

Mas Lindauro andava cada vez mais ausente, chegando cada vez mais tarde do serviço,
trocando as pernas. E eu fazendo o serviço de casa e matutando que ele já estaria nos
braços de uma desfrutável, algumazinha qualquer que não sentia dor quando ele mandava
virar de bruços, vai ver que era isso.

O diabo era que eu gostava dele e achava que aquele Lindauro que me enfeitiçou na roda
de samba da Tia Zezé podia entrar a qualquer momento pela porta da casa. Quanto mais
ele se distanciava de mim, mais eu tinha saudade dele.

E por isso resolvi fazer uma surpresa no dia do nosso primeiro aniversário de casamento.
Preparei um estrogonofe com batata corada, arrumei nossa mesinha de fórmica na copa mesmo
– a sala só tinha sofá e televisão – dois pratos, talheres lado a lado, guardanapo de pano
enfiado numa fitinha do Bonfim, dois copos – um para água e outro para cerveja, que deixei
gelando desde cedo na parte mais fria da geladeira. Tinha pudim de leite condensado e
goiabada, ele poderia escolher. De manhã tinha ido na farmácia comprar um pote de vaselina,
queria dar uma chance a ele, agradar Lindauro de qualquer jeito, mas eu não era boba não,
não queria era sentir dor.

Quando deu 8 da noite, tudo estava pronto, eu de banho tomado e perfumada, com um vestido
justo que peguei emprestado com a vizinha Djaira, com a condição que, pela ocasião, eu não
usasse sutiã nem calcinha. Estava me sentindo uma porta bandeira, esperando os rodopios
do mestre sala.

Mas quando deu 9 da noite, eu comecei a pensar em assalto, desastre de trem, atropelamento.
10 da noite nenhum telefonema da polícia, hospital ou Instituto Médico Legal. Quando o relógio
avisou meia noite, eu tinha certeza que ela estava na safadeza mesmo. Recolhi o estrogonofe
e o arroz para a geladeira, deixei as batatas coradas na frigideira e fui para cama.

Tirei o vestido com cuidado para não amassar e me deitei nua, debaixo dos lençóis.
Uma da manhã, nada. Duas da manhã, nada, três da manhã nada. Fiquei com o olho aberto
grudado no teto com uma raiva danada. Quando deu cinco da madrugada, ouvi um barulho
de chave e passos andando na direção da cozinha. Fechei os olhos e fingi que dormia.
Percebi Lindauro entrando tropeçando no quarto, mas bem devagarinho. Senti que ele tirou
a roupa e se meteu nu na cama, passando a mão pelos meios seios. Mas ele pensava que eu era boba.
Dei uma virada de lado, seguido de um resmungo só para ele saber que naquela noite não
tinha mais nada. E logo ele adormeceu profundamente. Roncava com bafo de cerveja fermentada,
e para ter certeza que que ele não acordaria mais, segurei e sacudi o pau molengo dele,
que molengo ficou até eu desistir.

Levantei e fui beber água. Estava seca de raiva. E quando cheguei na cozinha vi um ramo
de flores enorme – deve ter custado dois dias de trabalho do Lindauro – numa cesta de vime
bem em cima mesa. Era tão grande que nem cabia no meio dos pratos, dos copos e os guardanapos
de pano. Desgraçado. Deve ter lembrado do aniversário do nosso casamento no meio da
frutricação com a vagabunda e deu-lhe remorso às 4 da manhã.

Ele pensa que eu sou boba, mas não sou boba não. Quando o despertador tocou às 6 e meia,
percebi o pulo da cama que ele deu. Percebi porque não vi. Estava na cozinha passando café.
Na mesa, duas xícaras, uma manteigueira e uma cestinha do pão que o padeiro deixa na porta
todo dia. O matagal de flores na cesta de vime continuava no mesmo lugar, nem mexi.
Deixei de proposito, porque quando ele fosse sentar não queria ficar olhando para a
cara dele nem que ele quisesse olhar para minha.

Quando ele chegou desenxabido, eu estava passando manteiga no pão com a faca de serra mesmo,
para não ter que lavar muita coisa. Ele tentou falar comigo, me deu um beijo na testa,
passou a mão nos meus cabelos, tentou bulinar o bico do meu seio direito, mas levou um chega
pra lá, sem palavras. Pensa que sou boba? Fingi que nada tinha acontecido. Ele acusou o golpe
e também silenciou. Acho que se serviu de café – as flores não deixavam que eu visse a cara dele
 -, também nada disse e saiu porta afora. Vai, traste, disse eu para mim mesma.

Às 7 horas da noite, ele chegou todo serelepe puxando conversa, perguntando o que tinha para janta.
Eu vendo TV, vendo TV fiquei, só apontei para a cozinha sem desviar o olho da novela. Ele não
teve coragem de falar nada. Não havia mesa posta, nem jantarzinho caprichado, só gororoba direto
da panela. E as flores continuavam lá, já com algumas mosquinhas rodeando as pétalas. Fui dormir
e nem levantei quando ele saiu para o serviço.

Foi sem café. Mas deve ter olhado o vaso de flores do jeito que ele colocou, a essa altura
começando a feder, parecia velório demorado. E assim foi no dia seguinte, no dia seguinte
do dia seguinte, na semana seguinte, no mês seguinte. Sem café da manhã, sem janta servida,
sem conversa, sem trepada. Mas com as flores sempre na mesa.

O pior que ele nunca mais chegou em casa depois das sete da noite. Deve ter combinado com a
vagabunda encontros na hora do almoço, sei lá, tanto faz como tanto fez, eu não ligava mais
para ele. Só queria mesada para coisas da casa e para ir ao salão.

Eu notava que ele queria conversar comigo, mas tinha medo. E eu não queria conversar com ele,
porque também tinha medo de perder a cabeça, e ter que saber coisas, e tomar umas decisões
que eu também não queria. E assim vamos levando a vida. Seis meses se passaram e a cesta de
vime com as flores continua lá na mesa da copa, do jeito que ele deixou na noite do aniversário
do nosso casamento.  Todas murchas, secas, nem feder fedem mais, nem mosca quer ficar em volta.

Ele achava que eu era boba, mas eu não sou boba não.


Share


José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


0 comentários:

Postar um comentário