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sábado, 18 de fevereiro de 2017

Ganhar uns trocos, modos de viver e pensar - por Eloísa Aragão

Ganhar uns trocos, modos de viver e pensar

Os cabelos pranchados, presos num coque bem no alto da cabeça. As sobrancelhas desenhadas, o olhar brilhante, a calça justa no andar inquieto, no estreito caminho entre os carros que ela vigia nas ruas. Espaço onde faz bico porque “A vida não tá fácil, não, colega, e aqui eu ainda ganho uns trocos”.
            Jeanne é seu nome. Tem 27 anos. Experiências de vida não faltam: é a caçula de uma mãe que faleceu quando tinha 45 anos. Jeanne não conheceu o pai, mora numa pensão, vende café e bolo de manhã numa banca, esquina com um grande hospital. À tarde e às vezes à noite guarda carros nas ruas, não tem filhos, não conseguiu terminar o Ensino Médio. Quer fazer o curso completo de designer de sobrancelha, por um ano até foi assistente de um profissional dessa área e sabe que tem talento.
            Do amor não tem ideia nem muita esperança se vai chegar. “Quem sabe?”. Uma vez quando amou teve medo e só descobriu tarde demais. “É o que temos para hoje” e gargalhamos – talvez porque essa expressão tenha mais de revolta do que conformismo. Diz que acha que pagou a língua dos muitos julgamentos que fez sobre o modo de viver da mãe. Ela tinha HIV e ainda viveu 20 anos. “Não passou para mim na barriga nem para ninguém na família”. Fala também que sentia vergonha porque imaginava que a mãe contasse sobre o problema para muita gente na igreja. “Era um inventário de problemas, você nem imagina, colega. Mas a minha mãe era linda!”.
            No dia anterior, chegou para estacionar na rua uma Van transportando um grupo de professores que ia para um encontro de história. Jeanne se aproximou da mulher que lhe pareceu mais simpática e, depois de um pouco de prosa, disse: “Na escola, eu adorava as aulas de história. Lembro um dia quando fiz teatro e gritei: “In-de-pen-dên-cia ou mor-te! In-de-pen-dên-cia ou mor-te!”.
            A professora quis rir e não conseguiu. Seu bom humor tinha ficado manco, trancado num outono de 2016. Com frequência, tem desejo de gritar do alto de um mirante. Sua boca agora estava rígida, o olhar um tanto vago. Apenas suspirou fundo e repetiu baixinho mastigando as sílabas: “In-de-pen-dên-cia ou mor-te!”. 


 

(Mamilus de Venus, autoria desconhecida)


ELOÍSA ARAGÃO é doutoranda em História pela USP e mestre pela mesma instituição. Gosta muito de literatura, memórias e histórias de vida. Trabalhou em várias editoras e fez muitos freelas na área. Sente que o feminismo pode ajudar a mudar o mundo e uma saída para a crise civilizatória atual talvez seja viver de maneira alternativa e autossustentável. Isso faz parte dos seus sonhos.

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