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sexta-feira, 28 de outubro de 2016

ONIROMANCIA


Eu tive um sonho.

         Sonhei que, ansioso para dar a primeira e mais prazerosa mijada do dia, eu cambaleava pela casa. De olhos fechados e calções arriados até a altura dos joelhos, fiz com que o som do jato de urina contra a água do vaso descerrasse minhas pálpebras. Olhei sonolento para a sombra da girafa, encolhida e mal acomodada por detrás da cortina de plástico. Como uma súplica, sua cabeça deslizou para fora e então vi que ela estava com sede. Antes de escovar meus dentes, permiti que o mamífero artiodátilo ruminante de estimação esticasse o pescoço por debaixo de meu braço e tragasse o fio de água que escorria da torneira. De língua rugosa e desastrada, também engoliu os comprimidos caídos na pia.

Sim. Em meu sonho eu criava uma girafa, e isso não me causava nenhum embaraço. Ela vivia em meu banheiro e demonstrava estar mais à vontade ali do que jamais estaria nas savanas africanas. Gostava da umidade, da acústica, do escuro.

         Acordei sobressaltado com a extravagância do que me parecera uma cena cotidiana, familiar, quase enfadonha. Uma girafa e eu, assim, como um labrador e seu dono cego, companheiros há décadas, enfastiados por toda uma vida em comum. Nada entendo de simbologia e pouco me lembro das aulas de semiótica. Uma figura saída de um safari etíope — desajeitada, com cascos que deslizavam sobre os ladrilhos — deve ter algum significado para a psicanálise ou para os esotéricos da Nova Era. Quem sabe também tenha um para mim. Entender o sonho talvez forneça algum sentido para minha vida tão reta e plana, tão limpa e seca. Tão breve.

O que me diz a girafa? Sua sede, o que indica? E o fio de água? Os comprimidos? Qual o significado de um animal ungulado entre um chuveiro e um vaso sanitário? É um enigma. Se eu decodificar sua linguagem obscura, talvez seja premiado com um fim mais próximo da luz, de um milagre. Um desfecho olhado lá de cima.

Desde que acordei hoje, senti que, interpretado o sonho, também estariam traduzidas minha própria existência e sua misteriosa razão. Durante todo o dia ocupei-me em desvendar a charada de Hipnos e Morfeu. Logo eu. Eu que quase nunca. Ou nunca.

“As girafas possuem um sistema vascular responsável pela maior pressão sanguínea do reino animal.” Não sei onde li isso e nem mesmo se é um dado confiável, mas passei parte do meu dia acreditando que, durante meu asseio, eu sofreria um aneurisma. Bobagem. Nada na vida é tão fácil.  

Desalentado, passo as duas mãos por meu rosto e sinto ácaros passearem por ele. A pele áspera. A barba por fazer. Levanto do sofá e caminho até o espelho disposto na parede feia de minha sala. Observo meu pescoço magro, longo, amarelado e comido de sarcomas. Ainda ontem estas nódoas castanhas não eram tantas. Encaro minha febre e meus calafrios, minha dor de cabeça e meus olhos submersos, meu suor e minhas câimbras musculares. O exame aberto sobre o tapete da sala, como uma planta carnívora.

Tenho sede. Sei onde estão os comprimidos. E, bem aqui ao lado, é meu banheiro.


Emerson Braga

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