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quinta-feira, 20 de outubro de 2016

A SANTA INÊS

Nunca se ouviu de Inês um palavrão sequer. Nem mesmo quando fraturou o dedo
mindinho do pé esquerdo na quina do armário, situação de explosão verbal extrema,
quando até freiras são perdoadas. Aguentou a dor da topada ao seu jeito, proferindo
um “ái” discreto e doído, seguido de um “droga” gemido e sincero.
Foi socorrida pelo estressado marido Antônio Rui e ainda deu sinais
de sua grandeza.

- Fica tranquilo, meu bem, toma um remedinho para acalmar e me leva no colo. 

Assim é Inês. Vida inteira de tolerância, placidez e delicadeza, desde os tempos do
colégio católico, até se formar com louvor em respeitados MBAs de finanças
e gestão empresarial.

Santa criatura, o equilíbrio em pessoa. Nunca se desesperou com os filhos, um casal
quase adulto, ajuizado e independente. Nunca brigou feio com o marido, contrariando
o senso comum de que briga e casamento nasceram um para o outro. Tampouco, não
eram dados a arroubos de paixão e sexo, comportando-se os dois na cama como um
reloginho de previsibilidade, minimalista na quantidade e na qualidade da função,
suficientes porém cumpridores.

Braço direito financeiro de um grupo comercial, Inês não levantava a voz no trabalho,
como nunca xingou no trânsito, nunca saiu da linha, nunca perdeu a cabeça, a compostura,
as estribeiras. Apesar de conservadora, admirava uma frase de Che Guevara:
hay que endurecer pero sin perder la ternura jamás.

Leitora voraz e curiosa, tinha na cabeceira A Arte da Guerra de Sun Tzu, onde consolidou
suas convicções de que as batalhas podem ser vencidas sem que necessariamente se dispare
um tiro contra o inimigo.

Mas que inimigo? Não há quem não admire Inês. Sua voz calma de massagista de shiatsu
soava como música ambiental de consultório de dentista.

- Dona Inês, o presidente não aprovou as planilhas. 
- Deixa, Cidinha, que eu converso com ele.

Entrava na suntuosa sala do todo poderoso da empresa e voltava horas depois com as
planilhas aprovadas, as questões resolvidas, tudo encaminhado. Sem sustos nem adrenalina.

Em casa era a mesmo diapasão, o mesmo jeito de encarar a vida e levar a rotina adiante,
a despeito de qualquer imprevisto.

- Mãe, a Creusa teve um piripaque, foi embora e não deixou nada para o jantar.
- E pra quê existe telefone, minha filha?

Em menos de meia hora, a mesa estava posta com um jantar do providencial restaurante
da esquina. Depois da sobremesa, comandava a família na lavação dos pratos, com a
felicidade de um comercial de margarina ou de um desenho animado antigo de Walt Disney.
E seguia Inês seu curso, como um rio calmo que banha as pedras, dia após dia, com
sua delicadeza rotineira.

- Dona Inês, o presidente não aprovou as planilhas.
- Deixa, Cidinha, que eu converso com ele.

Mais uma vez, entrou firme e serena na sala suntuosa do todo poderoso da empresa.

- Sente-se, Dona Inês.
- Obrigado, Dr. Conrado.
- Dona Inês, por esta planilha, estamos indo pro buraco. E não venha com sua voz 
de Fada Sininho me dizer que estamos irremediavelmente indo pro buraco, porque 
não podemos ir para o buraco, não vamos pro o buraco, não herdei uma empresa do 
meu pai para levá-la pro buraco….
- Mas eu não posso inventar números, Dr. Conrado.
- Pois invente, Dona Inês! Sonegue, Dona Inês! Falsifique, Dona Inês! Deixe de 
ser certinha, Dona Inês. Vira a mesa, Dona Inês!

Inês levantou-se, foi até a entrada da sala como uma pluma que flana.
Trancou a porta e deu meia volta. Olhou bem para os olhos do chefe, segurou a
mesa pelas bordas e, com a calma de uma gueixa e uma força de lutador de sumô
-  incompatível com sua compleição física -  levantou o pesado tampo de mogno.
E literalmente virou tudo sobre o chefe. Foi computador, foi porta retrato,
foi papelada, foi copo d’água, xicrinha de café, celular, telefone, pasta, livros,
relatórios, luminária, tudo, tudo que estava na superfície tombou solenemente
em cima do poderoso Dr. Conrado, que, estático na poltrona de espaldar alto,
também virou de pernas para o ar.

- Sou obediente, Dr. Conrado. E para concluir, vai pra $#%#@@#&&&, 
seu ##$$#@#$@###&! 

Naquela tarde, Inês chegou em casa mais cedo do que o habitual, antes do lusco fusco.
Passou direto da sala para o quarto, sem fazer barulho. Enfurnou-se na hidromassagem,
num banho de longas horas, espumante, revigorante. Os filhos nem perceberam que a mãe
estava em casa, jantaram sozinhos e sozinhos se recolheram. Quando o marido finalmente
apareceu na suíte, um susto:

- Inês? Você a essa hora?
- Mandei o ##$$#@#$@###&  do Conrado para $#%#@@#&&&!

Antonio Rui arregalou os olhos.

- O que você disse?
- Isso mesmo que você ouviu. Mandei o ##$$#@#$@###&  do Conrado para 
$#%#@@#&&&!
- Repete, amor.
- Mandei o ##$$#@#$@###&  do Conrado para $#%#@@#&&&!
- Continua, amor, continua… você fica linda dizendo essas coisas…
- Mandei o ##$$#@#$@###&  do Conrado para $#%#@@#&&&!

E Antonio Rui entrou na banheira de roupa e tudo. Foi se despindo ali mesmo,
entre espumas e águas revoltas. Um espetáculo de amor feroz e sexo selvagem explodiu
na hidromassagem, como uma fonte romana viva, eufórica, iluminada. Os dois continuaram
pela cama, noite adentro, lençóis aos avessos, madrugada nascendo, raios de sol nas
frestas da janela, filho tossindo, despertador tocando, cachorro latindo, carros
saindo na garagem, o dia útil lá fora mostrando a que veio, e nada, nada foi capaz
de deter aquele vulcão em erupção.

Exaustos, caíram no sono mais que abraçados, grudados, entrelaçados nus como
uma trança de gente. Nem ligaram para rotina que batia às portas, para o dia a
dia inclemente, para a vida que fervia além daquelas paredes.

E enquanto isso, do alto do Olimpo, Eros e Afrodite brindavam os amantes
redescobertos. Tão fogosos quanto restaurados.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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