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quarta-feira, 20 de julho de 2016

A besta

O Professor Frederik Krumann descortinou a mansarda do chalé e contemplou ao longe
a placidez do Lago Konstanz, margeado por alguns aglomerados de pingos trêmulos de luz.
A noite começava a chegar bem antes da hora prometida por Wilhelm Brodheinz, que viria
passar o fim de semana com sua nova namorada no pequeno sítio do seu mestre maior,
encrustado no alto de um bosque nos arredores de Sipplingens. Não seria a primeira
vez que o jovem de 25 anos merecia a distinção de tal convite. Mas com Sânia, sim.
Estava orgulhoso de apresentá-la, tanto quanto Herr Krumann curioso em conhecê-la
em pessoa.
“De fato, é uma bela moça”, pensou Krumann assim que viu o casal saltar do carro.
- Enfim, chegaram!
- O trânsito na saída da universidade estava infernal. 
- Imagino. Parece que todo corpo discente deixa Konstanz para relaxar no fim de semana.
- O senhor convidou mais alguém para o seu chalé?
Herr Krumann soltou uma gargalhada simpática. Seguiu-se outra fineza de bom anfitrião.
- Suponho que seja Sânia, não?
- Herr Professor Krumann ..., e se não fosse? Seria um constrangimento triplo.
- Sou eu mesma, Professor.
- Pois você é muito mais bonita do que a “moça de beleza incomum”, como Wilhelm 
me descreveu. Eu diria, com perdão do seu namorado, “moça de beleza estonteante”. 
Estabeleceu-se naquele momento prenúncios de um fim de semana agradável, de prosas
inteligentes e celebração de afetos. Para o professor, um mestre em História Germânica,
seria a oportunidade de extrair do seu melhor aluno antídotos contra sua solidão,
cultivo de amizade e boas risadas. Para o aluno, a possibilidade de enfim dormir
com Sânia entre edredons macios e travesseiros de penas de ganso. Sexo urgente nos
cantos escondidos do alojamento estudantil era dado por experimentado. Queria acordar
com Sânia desassossegado, depois uma noite das mil e uma noites.

Sânia Al Zarfih nascera em berço esplêndido nos arredores de Aleppo.
De tradicional família rica de mercadores sírios, tomou gosto por saber
mais do mundo do que fazer dinheiro às custas da pobreza alheia. Tanto que,
contrariando seu patriarca, entrou para uma das universidades mais conceituadas
do mundo árabe, exatamente a mais aberta às erupções naturais da Humanidade.
Já no segundo ano de Artes, Línguas e Ciências Humanas, Sânia dominava inglês
e alemão, arranhava francês e sabia que curiosidade, senso crítico e questionamento
eram pincéis do conhecimento e da sabedoria. Definitivamente, não se conformava
com sua origem embrulhada em dogmas.
Quando os tufões da guerra civil começaram a devastar Aleppo, Sânia entrou a pé
com a família pela fronteira do Líbano e conheceu a boleia de um caminhão até Beirute.
Era a vida recomeçando de favor na casa apinhada de parentes distantes.  Tida como
ovelha negra do rebanho, e impulsionada por uma imensa vontade de viver, transgredir
e se reinventar, esperou pai, mãe, irmãos, tios e primos caírem no sono, raspou alguns
mil dólares que faturou como guia de turistas e cuidou de se meter num caminhão de
miseráveis até uma praia deserta, onde um pesqueiro de péssimas condições aguardava
a turba para zarpar pelo Mediterrâneo. Espremida na proa, Sânia se livrou do véu e
o atirou no mar. Soltou os cabelos negros, balançou o rosto forte e sentiu no vento
com cheiro de maresia sua Primavera particular com cheiro de esperança.
Passaram ao largo de Chipre, da Grécia, mas no Mar Jônico os motores não aguentaram.
Ficaram os infelizes à deriva. O tempo, o destino e as correntes marítimas fizeram Sânia
conhecer a morte, a indigência, o medo de voltar para trás e a Itália.
A embarcação adernava pelo Adriático ao sabor da sorte, dias e dias, noites e noites
de sede e privações, até que deu com os costados numa praia no sul de Rimini,
cidade que Sânia conhecia de nome, pois sua avidez em saber coisas identificou no
centro histórico o lugar onde nasceu Fellini. Sabia quem era Fellini. Sabia o que era Rimini.
Tinha se encantado com Ammarcord numa fita pirata na faculdade e lido sobre La Dolce Vita.
Pensou que podia estar perto de Roma e mergulhar na Fontana de Trevi, mas não deu trelas
ao romantismo. Dez quilos mais magra, sem desgrudar da mochila sobrevivente, atravessou
de carona, trem e caminhão toda a Emiglia Romana, dormindo em pousadas de baixo custo,
evitando o relento e os acampamentos de refugiados. “Sou uma refugiada com dinheiro”,
dizia a si própria, toda vez que sentia cansaço e desejo de uma cama confortável e
banho quente. E de pouso em pouso, foi parar na Lombardia, onde encontrou um exemplar
de um novo mundo no velho mundo com que tanto sonhou: Milão.

Herr Krumann alçou aos próprios ombros a mochila de Sânia e levou o casal para conhecer
o chalé. Apresentou o salão do primeiro andar: uma sala de jantar com janela interna
para uma cozinha gourmet e um ambiente com poltronas e sofás direcionados a uma lareira.
À esquerda, uma estante subia pela parede acolhendo livros de todas as línguas
e tamanhos. À direita, de uma portinhola entreaberta via-se uma adega de boas safras.
Subiram uma escada estreita, onde houve uma apresentação pseudo solene aos aposentos dos hóspedes.
- Aqui é o ninho de amor do jovem casal. Há um banheiro próprio com hidromassagem. 
Espero que em algum momento vocês saiam da suíte para degustar minhas tentativas culinárias.
- Tentaremos, Professor - disse Wilhelm trazendo Sânia para um encaixe em seus braços.
- Muito agradável, Professor. Wilhelm esqueceu de dizer que a gula é meu pecado preferido. 
Agora, o tempo que ficaremos na suíte depende das delícias que meu namorado 
e o senhor têm a me oferecer.
A temperatura da simpatia estava subindo. Os sorrisos se alastravam. Herr Krumann
elogiou de viva voz a sagacidade e o desprendimento da moça, cuidando para não expressar
surpresa por sua inteligência e personalidade, para ele, incompatíveis com sua pele
amendoada, sobrancelhas fortes, olhos castanhos insinuantes e traços um tanto exóticos.
- Uma curiosidade, Professor.
- Diga, Sânia.
- Onde fica seu quarto de dormir?
- Ah, numa mansarda bem acima da suíte de vocês. Quando levanto da cama, 
bato com a cabeça no teto. É meu despertador. 
- Sânia, ele me disse que aos 14 anos já tinha 1.93 cm.
- Aos 14 anos, meus jovens, eu já me escondia dos russos pelos escombros de Berlim. 
Houve um instante de entreolhares silenciosos, quase reflexivos, logo interrompidos
pelo próprio Professor, que bateu uma mão contra a palma da outra.
- Águas passadas. Fiquem à vontade. Relaxem e quando quiserem, desçam para a ceia. 
Sânia jogou-se no colchão macio, com Wilhelm se aconchegando sobre seu corpo.
Embolaram-se e rodopiaram-se num beijo suculento, enquanto mãos despiam calças,
camisas, blusas, calcinha, cueca e sutiã.
- Sem pressa, devagar, Will. Não estamos no banheiro da faculdade...
Não era novidade para Sânia o sexo bem saboreado. Um chef de cozinha milanês
inaugurou sua vida de mulher adulta, tendo ainda provado na cama dois turistas
americanos casuais – um de cada vez - e um estudante de design francês, por quem
desconfiou ter tropeçado na armadilha da paixão. Mas não se deixou iludir.
Assim como apareceu, o francês sumiu da sua vida, sem ao menos um au revoir. 
Wilhelm seria seu namorado mais ardente – contrariando o mito da frieza dos alemães
– e já havia dois meses que se deviam conhecer o sossego de uma noite agarradinhos,
um dentro do outro, procedendo com calma os rituais do amor, com todos os suas audácias,
variedades, cheiros e sensações. Foi o que se deu naqueles primeiros minutos de embolação
nos edredons de Herr Krumann, seguindo-se nus à hidromassagem, quando se ensaboaram um
ao outro: ela cuidando com afagos manuais e orais do avermelhado pulsante do alemão
em prontidão, ele fazendo espuminha no triângulo hirsuto e receptivo de Sânia.
Refeitos dos suspiros e pulsações aceleradas, Wilhelm e Sânia desceram bem vestidos
e cheirosos ao primeiro andar, onde Herr Krumann os esperava com uma tábua de queijos
da região e presuntos defumados cortados finos, quase à navalha, uma cesta de pães,
uma travessa de Leberkäse rodeado de salada morna de batata e cream souer, apfelstrudel,
um pote de creme fresco e, imersas num balde de gelo translúcido, três garrafas de
Riesling Morstein, supostamente uma para cada um. A noite prometia. Sânia esfregou as mãos.
- Que linda mesa, Professor! 
- Não é sempre que recebo um jovem casal sensível no chalé. 
Wilhelm pediu licença para abrir o vinho e após a primeira prova, serviu à
namorada e ao Professor.
- Está bom, está bom para mim, obrigado, Wilhelm. Só vou beber para um brinde a vocês. 
Na minha idade não costumo abusar das refeições e beberranças noturnas.
Sânia mostrou que conhecia provérbios alemães.
- Já sei: desjejum de imperador, almoço de rei e jantar de mendigo.
- Como sabe tanto, Fräulen?
Wilhelm emendou.
- Sânia viveu seis meses em Milão como garçonete num restaurante alemão. 
Não fossem suas origens religiosas, diria que na outra encarnação foi germânica.
- Os alemães que conheci viviam me ensinando provérbios. Este em especial é uma farsa. 
No restaurante, jantavam carne de porcos como porcos, altas horas da noite. Eisbein, 
kassler, labiskaus, chucrutes, blutwurst, schwarzwurst, tudo exagerado.
Houve um profundo silêncio constrangedor. Herr Krumann replicou.
- Os alemães não são porcos, minha filha.
Por um instante, Sânia ficou desconcertada. Mas logo depois de um breve gole,
o Riesling lhe deu sinais de coragem e grandeza.
- Desculpe, Professor. Os alemães que conheci na Itália não eram elegantes, 
refinados e gentis como o senhor. 
- Claro, minha filha. Nem todas as uvas dão bons vinhos.
Wilhelm virou-se de costas e passou observar o ambiente, sempre de taça na mão.
Parou diante de uma parede, onde uma besta pendurada chamou sua atenção.
- Professor, essa arma medieval é novidade aqui.
- Ganhei de um aluno de Mitos Germânicos.
Sânia exibiu sapiência.
- É a besta de Wilhelm Tell. O suíço que virou herói na Alemanha. 
- Essa sua namorada sabe mais do que você, Wilhelm.
- Estudei Wilhelm Tell. Diz a lenda que ele desafiou o tirano dos Habsburgos, 
não se curvando diante de seu chapéu pendurado num poste. O tirano o prendeu por isso. 
Para soltá-lo, propôs um desafio. 
- Uma prova de amor e confiança. Está ouvindo, Wilhelm?
-  Claro, Professor. Continue, Sânia.
- Foi obrigado a amarrar o filho num tronco e colocar uma maçã na sua cabeça. 
A dez passos, ele dispararia da besta a seta. E assim partiu a maçã em dois. 
- Willhein, seu germânico indigno! Não conhece a lenda de seu homônimo Tell. 
Que vergonha!
- Desculpe, Professor. Sânia está se saindo melhor que eu sonhava.
- Sem competições, meninos, por favor. Vamos degustar a mesa que preparei.
Sentaram-se. A conversa fluiu descontraída, sem maiores cerimônias, uma garrafa
e meia já havia sido abatida. Herr Krumann estava encantado e curioso com a
desenvoltura de Sânia.
- Como vocês se conheceram?
- Foi na universidade de Konstanz.
- Em Milão fiz amizade com um casal de idosos suíços que me levaram para Zurich. 
Achavam que eu merecia mais do que ser uma garçonete. 
- E daí Konstanz, não?
- Sim, Professor. Falaram muito bem de uma universidade na fronteira alemã. 
Pagaram minha passagem e não tive problemas para ser aceita na Konstanz. 
Os estudos em Aleppo e minha condição me ajudaram muito. 
E o casal suíço acabou por produzir uma ajuda humanitária.   
- Você não se enquadra como refugiada.
- Não, Professor, nunca me senti assim.
- O que me diz, Wilhelm?
-  Sânia era jardineira do campus.
- Ainda sou. Trabalho para pagar minha estadia e meus estudos. Mas não quero 
ficar só com a mão na terra.
- E a paixão, quando acendeu?
- Foi aos pouquinhos. Toda vez que andava pelos jardins, sentia um alemão 
interessante me olhando de longe.
- Para mim, foi amor à primeira vista. Gostei do seu jeito de cavucar a terra.
As gargalhadas se sucediam. As garrafas de vinhos esvaziavam. Prudente,
Herr Krumann só bebia água e perguntava muito.
- E você, Sânia?
- Foi amor à segunda vista. Wilhelm arrancou uma tulipa e me ofereceu.
Mais risos. Mais goles. Os pães, os queijos, os presuntos e o bolo de carne também se iam.
O casal discorria sobre o amor com a excitação da circunstância movida a Riesling.
Herr Krumann cuidou de providenciar mais uma garrafa. E lá pelas tantas, falou sério.
- Sânia, você sonha projetos de vida com Wilhelm?
Mais um gole.
- Pergunta difícil. Mas acho que sim, Professor.
- Tomara que sim, digo eu. Amo Sânia mais que qualquer lourinha 
comportada que mamãe sonhou para mim.
- Conhece a mãe dele, Sânia?
- Ainda não. Vamos aos pouquinhos.
- Mas você ama Wilhelm, não?
- Disso eu tenho certeza.
- Pode provar seu amor por mim, Sânia? 
- Como você quiser, Will.
- Professor, você tem uma maçã?
A última garrafa fora aberta. Sânia não havia perdido a lucidez.
- Já sei. Vai me amarrar num pinheiro, disparar a besta e partir a maçã 
em duas sobre a minha cabeça.
- Você confiaria em mim, meu amor?
- De olhos abertos, Will.
O professor interveio.
- Calma, meninos. Vocês beberam demais.
- Não, professor. Quero mostrar o quanto amo meu arqueiro. 
E saber quanto ele ama seu alvo.
Herr Frederik tentou demovê-los da ideia louca. Sem êxito.
E partiram para o bosque atrás do chalé. Apesar de tantos Rieslings, não estavam
trocando as pernas. Mas caminhavam abraçados e gargalhantes, com o professor
carregando a besta.
Foi a própria Sânia que se amarrou no pinheiro. Wilhelm só lhe apertou os
nós das mãos entrelaçadas.
- Wilhelm, meu filho. Olhe bem o que está fazendo.
- Estou olhando, Professor. Uma maçã sobre a mulher que eu amo.
Sânia sorriu esplendorosa. Arregalou os olhos e se posicionou decidida.
Wilhelm levantou a besta em direção à maçã e prendeu a respiração.
O professor olhou para o chão. Wilhelm não hesitou e disparou.
A seta varou o olho direito de Sânia, atravessou o crânio,  cravando
a ponta na casca do pinheiro. A morena perdeu as forças, mas não caiu.
Ficou presa, joelhos dobrados, nas amarras do tronco. Ainda tentou mexer
a cabeça atônita e sôfrega, e com o olho que restava parecia fitar Wilhelm
como se suplicasse piedade.
- Errei, Professor!
- Não foi você quem errou. O destino conduziu a seta. E lembre-se de Wilhelm Tell, 
rapaz. Você não tem uma segunda seta escondida no casaco?
E Wilhelm finalizou a missão. A segunda seta perfurou certeira o coração de Sânia.
- Muito bem, rapaz. Mas da próxima vez, traga uma turca mais burrinha. A gente acaba 
se afeiçoando. Sou um velho cansado de guerra, que anda com pena de matar barata. 
Wilhelm se colocou em posição de sentido frente a frente com o Professor.
Seus olhos azuis brilhavam de orgulho. E os dois ergueram o braço direito
e bateram calcanhares numa só voz.
- Heil Hitler!
A saudação foi repetida no breu da noite, quando a bela Sânia desceu amarrada
em pedregulhos às profundezas do Lago Konstanz.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20