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terça-feira, 28 de junho de 2016

A MEU PAI



Pai;

O senhor sabe o que é ter medo, medo de verdade? Eu sei. Durante boa parte de minha vida, tive medo de que você me batesse, me castigasse ou não me aprovasse. Tive medo de que seu amor me fosse negado, de que o senhor não me protegesse do mundo, de que eu não pudesse mais viver sob seu teto. Tive medo que você se envergonhasse de mim, se decepcionasse, ou desejasse ter dado a vida a outro filho que não fosse eu.

Todavia, de todos os medos que já senti na vida, pai, talvez o maior deles tenha sido o de que você sofresse, não só através de mim ou de qualquer outra pessoa, mas através da dor. Hospitais sempre me deram um medo abominável, mas, encontrá-lo no leito de um deles me amedrontou ainda mais. As bolsas de soro, as seringas, as enfermeiras sonâmbulas, a sonda que auxiliava em teu tratamento e que, mesmo assim, me preenchia de receio e pavor... Medo! Medo! Medo! Eu tive tanto medo, pai. Por ti. Por mim. Tanto medo.

Mas eu não sou de subjugar-me facilmente... Ai, isto eu aprendi certamente contigo. Não permiti que o medo me vencesse, me desarmasse. Então permanecemos nós dois ali, o medo e eu, a velar teu inquieto sono enquanto eu descobria uma coisa boa através do temor que eu senti por ti. O senhor é tão forte, pai. Não reclamou, não gemeu, não chorou, mesmo com as marcas do processo cirúrgico tatuando os lençóis com dor e sangue. Você foi tão corajoso que acabei por crescer dentro de mim, inspirado em tua vontade de viver, em teu desejo de continuar neste mundo tão feio, porque em teus olhos que não envelhecem, este é o mais belo dos lugares, e é onde o senhor insiste em permanecer com tanto bom humor e integridade.

Após tua alta médica, sonhei com uma lembrança distante de minha infância. Estávamos tu e eu na feira-livre, o senhor sempre com seu passo apressado e eu a esbarrar nas pessoas, pequeno, magro, assustado com a ausência de tua mão que sempre insistiu em nos deixar andar — meus irmãos e eu — com nossos próprios pés. De repente, me perco. Olho para os lados, afoito, inquieto, ai o medo, ai o medo. Então tenho a desesperada ideia de me por de gatinhas, arrisco-me a ser pisoteado e então, para meu alívio, reconheço teus chinelos e teus tornozelos, no meio de tantos pés que jamais me levariam até onde o senhor me levou. E eu cheguei longe, pai. Cheguei exatamente aqui, onde não temo mais ter medo.

E já não me interessa se sou um bom filho, se o senhor é um bom pai, se fizemos a coisa certa, se nos entendemos ou se nos acostumamos. O que me importa é que estamos juntos e que o tempo que nos resta é um acessório desnecessário à manutenção de nossa amizade.

Pai. Meu pai. Não tenha medo. Agora posso te chamar de filho.

(Texto escrito depois de meu pai, João Morais, passar por um delicado processo cirúrgico que foi seguido de algumas complicações pós-operatórias. Hoje, ele está muito bem de saúde.)

Emerson Braga


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2 comentários:

Ah, meu amigo, que texto lindo! Comovente, emocionante, sua escrita leva o leitor às lágrimas. Parabéns, principalmente parabéns ao seu pai por esse maravilhoso ser humano que gerou e que tenho o orgulho de ter como amigo.

Se era pra fazer chorar, fez. Tantas implicações nessas linhas, tantas nuances apenas citadas, tanta coisa represadas, tanto afeto. E a vida se afunilando, se afunilando, mostrando o que é essencial. Belo texto.

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