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quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

ONDE ESTÁ VOCÊ?

                                                           
                     ONDE ESTÁ VOCÊ?

Daí, quando fechei o livro, a velha e conhecida sensação de perda voltou. Acontece sempre quando me identifico com o autor. É como se ele captasse minhas ideias e as transformasse em lindas frases pelas quais vou me revelando; me revelando por meio de outra pessoa. E, quando o livro termina, parece que ficou faltando alguma coisa. Ele não disse tudo. Restaram coisas que não foram ditas ou escritas. É então que a vontade de escrever chega forte como um tornado. Falei bem: um tornado chega, destrói e vai embora com a mesma rapidez. Sobram destroços e um desânimo enorme de reconstruir.

Milan Kundera escreveu “A Insustentável Leveza do Ser” que, depois de vinte anos, reli. E, de novo, tornei a me comover com a delicadeza do sentimento desvendado, exposto como pérola em concha aberta. 

Estou atravessando uma fase que espero passe depressa. Vontade de fazer nada, nada está bom e tudo me incomoda. Incomoda-me o arrastar de chinelos no andar de cima. Incomoda-me o jardim onde o mato cresce. Incomoda-me a pergunta óbvia, a resposta sem sentido. Incomoda-me a visita inesperada, o telefonema inoportuno. 

Uma intolerância terrível com as pessoas e isto tem me custado a perda de bons amigos. O pior não é perder os amigos, o pior é não me importar com isso. 

Antigamente, era eu antigamente. E quando antes essa ausência total de emoções me acometia, eu apenas me acomodava à inutilidade dos dias e aguardava. Aguardava, sabendo que uma coisa cá dentro, apesar de adormecida, estava viva, estava atenta e era forte. Sentia que a qualquer tempo, porque tempo havia, ela poderia explodir. E aí, de duas uma: ou iria parar num sanatório ou aconteceria numa grande realização. Mas isso era eu antigamente.

Descubro-me hoje sem ter acontecido. Descubro-me hoje um nada em meio a dois nadas. E, pior, sem mais tempo para ser o tudo que me pensei um dia. 

Acho que é isso. Mas, agora, quero deixar Kundera de lado, e me deixar de lado também, para me aproximar do você, leitor sensível e inteligente. Você que, para sorte minha, existe e faz parte desse mundo à parte. 

Pois é. E onde está você? Onde está você para que eu possa falar, contar, rir e chorar tudo o que senti e sinto? Diabo, se pelo menos eu soubesse onde você mora e se mora aqui por perto. Taí, hoje seria um dia que eu lhe telefonaria e até convidaria para jantar. Teríamos tanto o que falar, rir e chorar tudo o que a gente pensa e sente. 

Tantas coisas queria saber de você! Será que leu os mesmos livros que li, assistiu aos mesmos filmes que eu? O que pensa você enquanto espera o sinal abrir? Será que lhe acontece, às vezes, esse atravessar de horas que se arrastam assim vazias e tristes? 

Pois é. Onde está você? Teríamos tanto o que trocar... Falar de sensibilidades e de saudade. Angústias, formas diferenciadas de ser, desesperos. Falar, falar até que o tempo se perdesse e o cansaço fechasse meus olhos finalmente enxutos. 

A gente tinha que se ver por aí qualquer hora dessas pra falar bobagens da vida. Tantas bobagens sérias a vida tem pra contar. Bobagens assim como essas que acabei de dizer. 

A gente precisava se encontrar por aí.

Cecília Maria De Luca


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12 comentários:

Apesar de leve, a leitura sinaliza quanto pode ser insustentável encarar vida e tempo de frente, sem mascara nu vestido de palavra - "eu estou aqui"rs. Parabéns por sua criação, gostei do estilo

Lindo. Identifiquei-me aqui e ali, além e acolá. Dias ruins esses, não? Mas, ao mesmo tempo, tão importantes. Um texto verdadeiro, sensível e cheio de pedidos explícitos e implícitos. Hora decescrever, escrever. Hora de gritar, berre! Beijo

Como gosto de ler seus textos!!! Parabéns!!! Você sempre consegue me surpreender!!!

Obrigada, Cinthia, mesmo! Ando meio assim, meio cá, meio lá. Saber que tenho amigos que por vezes também se sentem assim, me faz pensar que não estou enlouquecendo. Beijos!

Obrigada, Antonio Baltazar, pela leitura carinhosa. E ao anônimo também.

Onde está você? Aperto no peito! Dor doída! Saudade de tudo! Amei seu texto! Como sempre, você não existe!!!

Obrigada pelo estímulo, Maria Silvia! Você sempre carinhosa.

Cecília, por essas inexplicáveis coincidências, justamente no início desta semana peguei a enxada e tirei um pouco do muito mato que tinha aqui em casa. Difícil dizer o quanto me senti bem fazendo isso, principalmente ao cair da tarde, assentado na escada e olhando aquele belo pedaço sem a erva daninha que tanto me incomodava. Foi muito mais fácil do que pensei, valeu muito mais a pena do que eu jamais poderia imaginar. Marcelo.

O primeiro passo é aceitar a angústia. o segundo é expô-la ao próximo, o terceiro passo é descobrir que ela não é só sua!
Adorei o texto!Abre muitas reflexões!
Parabéns Cecília!
Juliano

Juliano e Marcelo, muito obrigada pela leitura e comentário.

Às vezes, ao ler seus textos, chego a ficar constrangido do tanto que adentro sua intimidade. Sei que é você que convida, Cecília, mas é que tudo se revela tão seu que preciso realmente me esforçar para não me sentir um intruso. Minha amiga, sempre que "nos vemos por aí", nessas esquinas maravilhosas que apenas a literatura é capaz de proporcionar, eu ganho o meu dia. Obrigado por escrever... E também por ser esse livro aberto. Você me inspira.

Você jamais seria um intruso, Emerson, amigo querido. Obrigada demais pela leitura.

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