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quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

HISTÓRIAS ROUBADAS

Uma mulher de 40 anos se casa com um viúvo bem-sucedido, pai de um filho pré-adolescente,
ainda inconformado com a perda da mãe. No processo penoso e diplomático de conquista da
confiança e do possível amor do enteado, acontece o inusitado, o inexplicável, o incontrolável:
a mulher é surpreendida por uma ensandecida atração carnal pelo menino, que por sua vez,
com a sexualidade em riste, alimenta o tesão recíproco. Parece um caso escabroso de pedofilia
e perversão, daqueles em que a gente esbarra nos noticiários, e que quase sempre acabam em escândalo, quando não em tragédias acachapantes. Mas tudo isso é fruto da imaginação de Mario Vargas Llosa, expresso poesia e erotismo no romance "Elogio da Madrasta."

Por que isso agora? Porque não consigo pensar em outra coisa senão em histórias extraordinárias
de amor e sexo, consequência angustiante da fase insegura meu processo criativo, prestes
a materializar meu primeiro romance - "Corações Entre Pernas", Bookstart - que orbita neste universo e que já está em finalização na editora. Vale acrescentar que no momento também estou enfeitiçado pelos requintes invejáveis das tramas da eterna "Ligações Perigosas", que agora me vicia pela TV.

É sempre assim. Começar a escrever uma história todo mês – ainda mais num período quando festividades e bebericagens se superpõem - é de dar frio na barriga e palpitações de tamborim.
Enrolo o máximo que posso, chacoalho o mouse, passo um paninho na ameaçadora tela em branco,
sopro farelinhos entre as teclas, troco a fonte das letras, bato pernas pelo Google,
opero manobras ridículas para dar tempo ao tempo, até que uma ideia, uma mísera inspiração que seja, se aproxime e se enrosque em mim.

Enquanto ela não vem, caio na armadilha das lembranças de tantas histórias entulhadas no sótão
do inconsciente e resolvo revisitar uma antiga crônica que cometi há tempos. Nada mais atual
para este meu momento de lacuna criativa confessa. Tais histórias esfregam na minha cara a inveja
de seus férteis criadores, na inocente e descabida pretensão de que eu poderia - ou gostaria -
de ter sido um deles.

Na sequência da madrasta tarada, aparece um Nelson Rodrigues decantando a desventura de um
homem que, ao sair do trabalho, passava na casa da amante, onde se locupletava na cama e
na lauta mesa posta. Desconfiada, a mulher oficial resolve em silenciosa vingança preparar
supremas iguarias para o jantar tardio. Covarde, o sujeito jantava duas vezes. Uma rabada antes
e um bobó depois, macarronadas e seguidas bacalhoadas, estrogonofes e imediatos vatapás.
Tudo cabia no estômago enfastiado do infeliz, vítima de uma duplicidade amorosa da qual
não conseguia se desvencilhar.

Não digo o final. Procurem "O homem que jantava duas vezes",
conto da série "A vida como ela é", obra tão contundente e humana quanto, por exemplo,
uma história ácida de Rubem Fonseca, que me persegue em momentos de vazio na imaginação.
Trata-se de um jovem casal recém-casado, que vai em lua de mel para um acampamento
nas margens de um rio no Colorado. Mesmo tendo bem vivido o sexo prévio, a lua de mel
é um desastre. O rapaz perde totalmente o desejo pela mulher, uma patricinha afetada,
passa a agredi-la com o desprezo sexual e se instala o tormento. A cada dia, não se
reconhecem mais. O casamento mal começou e já vive a iminência de um desastre
até que o rapaz vê a mulher saindo do sanitário rústico do acampamento com um rolo
de papel higiênico na mão. Sem que ela perceba, vai até lá e vê: uma formação cilíndrica
semi-submersa, portentosa, repugnante. E a partir da simbologia do extremo da intimidade,
o desejo reacende. Transam a transa das transas sem parar, como humanos e animais que são.

Forte, esse Rubem Fonseca, não? Mas não mais que Sófocles que escreve um Édipo que mata o pai
e tem relações sexuais com a mãe, sem saber o quanto essa história daria pano para manga.
Na esteira do mote, vem um filme com Marcello Mastroianni, que faz o papel de um homem que
20 anos depois volta a uma vila para reviver um amor da sua adolescência. Claro que não encontra
a mulher, mas para não perder a viagem, tem um caso com uma ninfetíssima Natasha Kinsky.
E no auge dos orgasmos múltiplos, desconfia que ela é sua filha, fruto daquela tal paixão
deixada para trás. Doideira. Quer outra?

Maria Eduarda e Carlos Eduardo se apaixonam. Vivem um amor intenso até que descobrem
que são irmãos, numa trama genial de Eça de Queirós. Agora quem me aparece é Machado
de Assis, com sua indecifrável dúvida sobre a fidelidade de Capitu e, logo depois, Jorge
Amado me cutuca com a história de uma mulher mais feia que o diabo com dor de dente,
que atraía os homens mais bonitos da cidade, fenômeno justificado pelo fato de a mulher
possuir uma "vagina chupeta", "em cujas profundezas havia um anjo a chupitar".
Vale esclarecer que a primeira palavra da sutil descrição do autor não é vagina,
mas aquela mesma, de rima rica com chupeta e de despudorada sonoridade.

Coisas de Jorge Amado, o mesmo que presenteou o mundo com o caso da cozinheira
que prevaricava com o fantasma do primeiro marido. E por aí vai meu pensamento,
bloqueado pelos amantes de Verona, pelo fetiche da Belle de Jour, pela comovente Madame Butterfly, pelo persistente amor dos tempos do cólera, pela impossibilidade da paixão
de um gorila por uma loura, pela felicidade engolida numa neblina de Casablanca.

Enredos e fábulas de amor e sexo me atropelam como um trem desembestado,
mas ideia nova que é bom, nada. Chego ao momento de entregar os pontos.
Meu processo criativo não passou da primeira fase - fracassei ao primeiro beijo -
e me curvo diante do assalto de tanta ficção já escrita e bem escrita. Peço desculpas
a quem me lê pela falta de imaginação, e aos citados, pela usurpação.

O que me consola é que, se a inspiração me derrubou, pelo menos, acho que sugeri
algumas histórias formidáveis, que podem ser visitadas ou revisitadas, em livros, TVs,
DVDs, internet, tanto faz. O importante é que, apesar dos tempos de iniquidade,
desesperança e lama tóxica que estamos vivendo, assim como o amor e o sexo,
recordar boas histórias - ousadas e poderosas - engrandece a nossa alma.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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