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segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Mondrique

Durante a execução do seu número, Mondrique mal se permitia disfarçar a tensão. Ela estava lá, a congestionar-lhe as feições, perturbando sua performance no picadeiro. Havia errado um truque, mas o respeitável público daquela cidade interiorana perdida no mapa brasileiro parecia alheio à apresentação e não notou seu equívoco quando um coelho saiu sorrateiramente da manga de seu smoking no lugar de um baralho com 52 cartas. Coelhos saem da cartola, resmungou o mágico enquanto mirava sua partner, Reginalda, também tensa em virtude dos acontecimentos que em poucas horas iriam se concretizar. Enfiada em um sumário maiô coberto de paetês, Reginalda fazia caras e bocas mal ensaiadas para o pequeno público que fora prestigiar o Gran Circo Continental na falta de melhor entretenimento naquela cloaca de mundo onde viviam.
Não era bem verdade que os espectadores da última noite em que o Gran Circo Continental se apresentaria estavam totalmente displicentes em relação ao espetáculo. Havia alguém, o delegado da cidade, que aplaudia freneticamente cada trejeito de Reginalda. Também pudera. Ela aceitara o convite para permanecer na cidade, tornando-se amante clandestina do agente da lei com casa, comida e um par de trepadas semanais tão logo o circo baixasse suas lonas. Mondrique estava desgostoso. Jurara amor eterno à Reginalda e não esperava tão sórdida traição. Como descobrira? Mais do que mágico, Mondrique era dotado de poderes sobrenaturais e a arte da adivinhação era somente mais um deles.
Poderia fulminar o casal adúltero por intermédio do seu olhar de seca pimenteira. Já havia experimentado em certa ocasião, não com pimenteiras e sim com um vira-lata que ousara avançar em sua canela numa madrugada perdida no tempo quando fora esticar as mesmas depois de uma apresentação em outra cidade. O pobre cãozinho trincou os dentes, estrebuchou e literalmente caiu duro em questão de segundos. O próprio Mondrique espantou-se com tamanho poder e com o tempo aprendeu a controlá-lo e, sobretudo, não o utilizar em contendas ou descontentamentos. E era esse agora o caso.
Maldita clarividência, pensou enquanto agradecia ao público com uma mesura. Despossuído dela sofreria tão somente o momento da perda e não a certeza ansiosa da véspera. De pouca serventia era aquele talento, visto que raras vezes algo de bom para a sua vida ele previra.
Um super homem que ocultava seus super poderes para melhor viver entre os pobres mortais, assim se sentia Mondrique. O povo preferiria as mágicas inocentes. Caso levantasse um cadáver, que pandemônio não causaria! Seria considerado um deus, ou um diabo. Em qualquer dos casos, certamente desgostos e aborrecimentos teria ele aos borbotões.
O pequeno trailer que divida com Reginalda possuía dupla função de dormitório do casal e camarim. Noites de amores ardentes e preparativos para o espetáculo onde Juvêncio se transformava no grande Mondrique, maior mágico do planeta, nas palavras do mestre de cerimônia do circo, aquele apertado trailer havia testemunhado. O nome de fantasia fora chupado e adulterado de um mágico das histórias em quadrinhos ianques. De início sabia que Reginalda por ele nutria um amor sincero, afinal, Mondrique tudo descobria de sentimentos humanos. Um aperto de mão, um abraço, um simples toque em um fio de cabelo ou a intimidade do coito, o mínimo contato corporal e lá estava o mágico roubando os segredos alheios. Com o tempo, aquela faculdade de Mondrique revelou  o tédio da amada, indiferença, desprezo, até culminar pelo interesse de Reginalda pelo delegado e seu projeto de lhe abandonar. Ao menos algum plano para eliminá-lo ou algo parecido Mondrique não captara nos cada vez mais escassos contatos corporais com a futura ex-mulher. Revolta e conformismo acabaram por se digladiar dentro de suas ideias. Que ela fosse, ou melhor: ficasse na cidade.
Quando ele entrou no trailer, Reginalda já lá se encontrava. Retirava a maquiagem. Ela se assustou como uma criança pega em travessura.
– Fez as malas? – ele perguntou.
– Que malas? A gente leva tudo dentro do vagão mesmo – gaguejou a partner sem conseguir disfarçar a surpresa.
– As malas que o puto do delegado passará aqui para pegá-las ou você iria fugir escondida feito um rato que se esgueira pelos esgotos?
Quando Reginalda se foi, Mondrique decidiu que mulher alguma valeria o sacrifício de seu amor. Nunca mais se apegaria a rabos de saia, rachas ou jogos de seduções femininas. Para ele, bastavam agora as quengas das casas de tolerâncias instaladas nos arredores das cidades por onde o Gran Circo Continental aportasse. Haveria até dividendos: a cada toque recebido ou dado em uma mulher da vida já saberia de antemão o que ela pensava a seu respeito. Muitas vezes, interrompia o encontro ou perceber que por ele algumas damas de bordéis sentiam asco enquanto fingidamente gemiam espremidas entre o corpanzil do mágico e os lençóis fedendo a amores clandestinos. Pagava a cafetina e voltava para o seu trailer sem mais explicações. Nessas ocasiões, tornava a resmungar: maldita clarividência.
Certa ocasião, quando o circo estava armado em um lugarejo perdido no sertão nordestino, algo inusitado ocorreu. Mondrique, após o espetáculo onde se utilizou de maneira sutil dos seus reais dotes de levitação, com certo cuidado para que parecesse um mero truque de ilusionismo, sentiu necessidade de uma mulher para se aconchegar. Como sempre, perguntou de forma discreta a algum homem das cercanias onde estava instalada a zona da cidade. Informações tomadas, rumou para o casarão na outra margem do rio. Puteiro das antigas, com ares de cabaré, shows de moças quase peladas rebolando no palco e uísque de má qualidade servido. Nem bem havia se alojado atrás de uma mesa solitária, uma ruiva de vestido curto exibindo coxões alvos e colo sardento explodindo pelo decote acentuado, sentou sem cerimônia ao seu lado.
– Bebe o quê, meu lindo?
– Para mim, uma água tônica. A moça pode pedir o que desejar.
Água tônica naquele tipo de estabelecimento não havia. Contentou-se com um refrigerante. A ruivona, quase um metro e oitenta de carnes bem distribuídas pela silhueta, lhe pareceu simpática, além de sexualmente atraente. Gastaram alguns minutos em conversa pra lá de fiada e Mondrique pagou as bebidas enquanto combinava os honorários por uma hora de serviços na horizontalidade de uma cama. Subiram uma escada em caracol para o segundo andar do prostíbulo onde ficavam os quartos. A ruiva ia à frente, com o traseiro quase esbarrando nas ventas do mágico. No corredor, ela pegou na mão sinistra de Mondrique para guiá-lo até um dos cômodos. Estranheza correu por todo o seu corpo. Não divisou nada após o contato. Que intenções teria aquela mulher? Sua vidência findara? Haveria alguma interferência, um ruído na comunicação parapsicológica? Maldita clarividência que o abandonara, pensou.
Dentro do quarto semelhante a uma cela de convento pela pobreza dos móveis e cabine de navio pela economia de espaço, quis saber a graça da ruiva:
– Gigi.
Toda puta provinciana se chamava Gigi.
– De guerra? – perguntou Mondrique tocando-a de leve na ânsia de descortinar sua verdadeira identidade. Nenhum sinal telepático.
– Claro, lindo. O da pia batismal eu digo só para aquele que me tirar da vida – zombou enquanto mostrava os dentes alvos como o corpo que revelava à medida que o vestido escorria até o chão.
Diante da monumental voluptuosidade que se apresentava à sua frente, Mondrique esqueceu por um tempo as inseguranças dos poderes extra-sensoriais perdidos e se perdeu nos labirintos de Gigi, que dele fez gato, sapato, barba, cabelo e bigode, deixando-o extasiado.
Enquanto o Gran Circo Continental permanecia naquele rincão no fim do mundo, Mondrique quase que diariamente visitava Gigi nos seus aposentos de luxúria. Ela se mostrou receptiva ao mágico, tratando-o com carinho, ternura e muito sexo. Após cada ato consumado, dia após dia, o mágico tentava, através de abraços, beijos e chamegos, conseguir extrair da meretriz algo que revelasse seus verdadeiros sentimentos. O afeto que Gigi demonstrava antes e depois dos entrelaçamentos mundanos eram reais? Maldita dúvida que me assola, resmungava Mondrique.
E ele foi se apaixonando pela marafona do interior, quebrando a promessa que fizera quando da deserção de Reginalda. Com medo de que o dono do circo resolvesse encurtar a temporada na cidade em razão das baixas bilheterias, decidiu usar seus poderes ocultos e incrementar cada vez mais seu número, visando atrair público e manter o picadeiro montado por aquelas bandas.
Foi um tempo em que o Gran Circo Continental vivenciou apresentações memoráveis, desde a já manjada levitação de objetos, alguns dias depois trocados por voluntários que se aventuravam ao sobrevoo sobre a plateia quase esbarrando no alto da lona circense, passando por um extraordinário espetáculo de luzes e fogos que jorravam das mãos energizadas de Mondrique, este tomando as devidas precauções para não ferir um membro da plateia mais entusiasmado.  O ponto alto foi quando ele deu de fazer adivinhações. Desta forma, descobriu que seus poderes telepáticos só com Gigi não funcionavam. Maldito mistério, lamentou.
O circo entupia de gente na esperança de conhecer um futuro melhor após o mágico tocar-lhe as mãos. Contudo, Mondrique assevera que só o passado revelava. O futuro a Deus pertence, repetia prevenido em não se meter em complicações acerca das fofocas locais. Atendia no máximo a meia dúzia de curiosos, revelando nomes de família, doenças de infância, fatos marcantes em suas existências. Do passado, escondia com habilidade qualquer fato embaraçoso daqueles que se dispunham a tomar parte no número.
A fama do mágico correu toda a região e claro que a outra margem do rio não poderia escapar das notícias que um prestidigitador estava fazendo proezas no cirquinho mambembe que por ali aportara. Gigi, que já sabia onde e no que Mondrique labutava, foi em seu dia de folga, acompanhada por um cortejo de quengas, prestigiar o sucesso de seu cliente preferencial. Sentou-se na primeira fila ombreada por suas colegas de profissão, para o escândalo da sociedade local. Mondrique ficou encantado com a visita e no final da apresentação, materializou um ramalhete de flores que ofertou à amada. Ele tinha planos.
– Quer casar comigo, Gigi?
– Tenho que ir com o circo, lindo?
– Na cidade eu fico, mas terás que largar a saliência.
– Aceito então.
Alugaram uma casinha do outro lado da margem do rio. Mondrique dava consultas, passado, presente e futuro. Até pequenas curas fazia. Tudo a preços módicos, mas o suficiente para levarem uma vida confortável. Com o tempo, caravanas começaram a chegar à porta da casa, no intuito de consultarem o vidente agora famoso. Hotéis, restaurantes e lojas de lembrancinhas alavancaram o comércio da região. Até o puteiro onde Gigi trabalhara se beneficiou com o fluxo de turistas. Mondrique tinha alguns aborrecimentos vez por outra. Em inúmeras ocasiões foi preso pela prática de curandeirismo e solto após alguns dias, voltava ao seu ofício de médium. Gigi na verdade se chamava Laurinda. Isso Mondrique, agora rebatizado de Irmão Juvêncio, não adivinhara. Ela mesma, cumprindo promessa, revelara o nome ao marido. O que nunca Juvêncio descobriu foi que Laurinda também possuía os dotes da clarividência. De alguma maneira o contato corporal entre aqueles seres embaralhou o dom do esposo enquanto o dela se manteve intacto. Abominava utilizá-lo. Durante toda infância, de bruxa era chamada pela família e vizinhança. Assim, quando Juvêncio a tocou na noite em que se conheceram, ela já sabia o final dessa história.


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Zulmar Lopes
Carioca, jornalista, contista e aspirante a romancista, Zulmar Lopes tem um punhado de prêmios literários, a maioria de nenhuma importância. Membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras (ACL). Roteirista do curta de animação “Chapeuzinho Adolescente”. Em 2011 lançou o livro de contos “O Cheiro da Carne Queimada”. Finalmente concluiu o maldito romance cujo pano de fundo é o carnaval carioca e está na expectativa de que alguma editora incauta se atreva a publicá-lo.
todo dia 21


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