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segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

INSÔNIA


                      INSÔNIA

 Cecília Maria De Luca

Estou deitada. Já se faz tarde e pressinto mais uma noite insone. O lexotan flerta comigo, mas hoje não. Preciso de uma ideia, umazinha só. Uma palavra... Nada, as horas passam, a inspiração não vem e meu prazo está no fim. Preciso escrever, meu Deus, mas sobre o quê?! Lá fora a tempestade martela o telhado. Ouço estrondos e os raios riscam o céu, clareando, vez em quando, o breu em que me encontro. Luzes e sombras. Este, aliás, foi o tema de uma reflexão de Natal que publiquei anos atrás. E o Natal está próximo, quem sabe uma mensagem de otimismo caia bem. Sim é isso. Vai, uma palavra só e consigo. Estou tensa e preciso relaxar. Meditação, quem sabe? A técnica é respirar fundo, uma, duas, três vezes, não bloquear os pensamentos, deixar que venham, observá-los e deixá-los ir, até que sua cabeça fique vazia. Sempre respirando fundo. Tudo bem. Respiro fundo por várias vezes e observo meus pensamentos. Assim, ótimo... Vejamos o que passa pela cabeça.
  
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Imagens fragmentadas numa conexão de horror. Elas vêm e vão num círculo interminável. O tempo passa e me pergunto: cadê a parte em que os pensamentos vão embora, que a cabeça esvazia?

A madrugada avança e me vêm à lembrança os tempos de criança, das brincadeiras de rua. O tempo em que as ruas eram um convite aberto para o encontro de vizinhos e amigos. Uma daquelas brincadeiras era a de “mocinho e bandido”, inspirada nos filmes de bang-bang da época. Dividíamos a turma, metade do bem, metade do mal. Usávamos revólveres de brinquedo, então permitidos. Sua proibição, hoje, talvez seja uma das causas de jovens e adultos usarem armas de verdade para sair atirando em escolas, ônibus, cinemas, mas não vou entrar nessa discussão.  Quero lembrar e lembro que a gente se escondia atrás de árvores, muros, esquinas daquelas ruas tão calmas e pá, pá, pá. Claro que os bandidos perdiam sempre e, quando capturados, o xerife, sim, porque tinha um xerife, conduzia o bando para o xadrez, que era o nome popular para prisão. Nosso xadrez ficava no porão de uma das casas e a turma presa ali só era solta depois de pedir água, perdão e prometer bom comportamento. Alternávamos a turma: um dia, este, esse e aquele eram os bandidos, nós os mocinhos. Noutro dia, eles eram os mocinhos e nós os bandidos. Tudo muito bem definido, inclusive no mundo dos adultos. Hoje parece que as coisas não se definem mais, ou melhor, definem-se só por um lado. O lado dos bandidos. Bandidos rotos julgando bandidos esfarrapados, bandidos esfarrapados acusando bandidos rotos, todos bandidos rasgados, descarados, cínicos, mal feitores, hipócritas, ladrões, assassinos. E nem se pode dizer que as vítimas seriam os mocinhos. Não, não há mocinhos na história que o mundo escreve hoje.

A história que se escreve hoje não contempla nobreza de sentimentos, honradez ou delicadeza. Nada nem ninguém se salva, tudo dominado, contaminado como as águas do Rio Doce, como as praias do Mediterrâneo, como o solo da Síria, como o solo das Américas, da Europa, do bloco oriental, do diabo a quatro. O mundo, incluindo nosso país, bebe o veneno que criamos no laboratório da indecência, da imoralidade, da crueldade, do cinismo, da intolerância, do egoísmo, do ódio, da ambição desmedida, do preconceito, da falta de vergonha.

As horas voam, não encontro a palavra que quero e um pensamento angustiante deixa-me um travo na boca: nunca antes o mundo foi tão conectado e, no entanto, nunca antes tamanha sensação de isolamento, de estranhamento, de não pertencimento.

Faz tempo que a chuva acabou. A claridade que vejo agora é a luz da manhã que se avizinha. Meu pai sempre dizia que, depois da tempestade, vem a bonança. Abro as cortinas e contemplo as luzes da cidade se apagando à medida que o sol se levanta. E ele se ergue majestoso, cobrindo a humanidade, totalmente indiferente às suas mazelas. Parece me dizer que sempre foi assim e sempre será. Parece me dizer que, apesar de tudo, o planeta continua girando, bosques continuam florindo, cores continuam proliferando, águas continuam brotando, crianças continuam nascendo.

Estou exausta, o prazo com meu editor venceu e não consegui escrever a mensagem de Natal que queria. Ou consegui, quem sabe. 
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20 comentários:

Cecília, você retratou muito bom o que vivemos hoje, pelo menos os que possuem alguma consciência da nossa situação. É o senso crítico que tão bem te caracteriza que te moveu a escrever essa bela crônica. Precisamos urgentemente acordar e buscar uma forma de alterar o nosso rumo. Suas palavras caíram em mim como um alerta. Parabéns e obrigado pelo aviso!

Esta insônia assola a todos nós! É isto!! Disse tudo o que estamos sentindo! Genial!!

Tenho esperança de um Brasil melhor! E senti saudade das brincadeiras de rua! "O lexotan flerta comigo", demais!!!

Só há heróis na infância, acho... De resto, quisera atender a prazos como você, com ou sem insônia. Muito bom texto, Loura Linda!

Suas palavras ME REPRESENTAM!! adorei!!

Obrigada, Maria Silvia e a todos pela leitura.

Tu sai mettere le parole in modo perfetto, sai trasmettere al tuo lettore le tue emozioni. Confido che il tuo Brasile possa cambiare come pure il mondo.

Querida e especial criatura humana. Sua verve de escritora a todos muito orgulha, até porque, nos dias de hoje, pouca gente se atreve a se expressar por escrito.
Que seu espírito nobre, refulgente, permaneça inspirando gerações.
Amo você.
Beijo perene...

Grazie, Bruno. Magari ci sia soluzione per tutti i problemi dell'umanità.

Magnifico texto!!!! Parabéns!!!!

Flávia Ramos, assim não vale! Me deixou emocionada. Te amo também.

Só tenho uma coisa a lhe dizer: Excelente!

(sou prolixo, fazer oque... encantado!) Seria o último texto de Cecília na Revista SAMIZDAT ... de 2015? Imperdível, intrigante, insônia... A começar pelo título que dialoga com o livro de contos de Graciliano Ramos que foi publicado em 1947... Vejamos isso mais de perto:
No parágrafo mais denso, aquele segundo parágrafo que cansa o leitor desavisado, a autora reitera a avalanche diária, o bombardeiro televisivo que somos obrigados a ver replicados em todas as mídias. Impotentes, não temos tempo para digerir e lá vem outra onda desinformação. Perfeito.
Assim, o prazer que vem de saborear a estrutura do texto oscila porque logo o dia vai clarear... E então, “antes de nascer mais um dia”, Cecilia nos leva a pensar a História - aquela que se arroga a definitiva razão porque ciência: “A história que se escreve hoje não contempla nobreza de sentimentos, honradez ou delicadeza” e mostra que a ficção é um instrumento que alarga horizontes.

Sorrateira, a autora tinha avisado não saber como desejar um feliz natal mas conclui a narrativa de forma iluminada: “a chuva acabou. A claridade que vejo agora é a luz da manhã que se avizinha” – e nos brinca com os votos do alvorecer indicando que é a consciência desperta que nos fará perceberá caminhos, possibilidades.

Parabéns, Cecília!

É isso! Você conseguiu! Como disse a Cinthia acima:EXCELENTE!Com todas as letras maiúsculas!

Muito bom, Cecília! Difícil não ter insônia assim.

"O mundo, incluindo nosso país, bebe o veneno que criamos no laboratório da indecência, da imoralidade, da crueldade..."
Bravo, bravíssimo!! Disse tudo... e terminou com a esperança do sol que se levanta todos os dias apesar de, mesmo que...

Obrigada, Tatiana, pela leitura. Realmente só com lexotan, viu?

É, minha amiga, precisamos despertar desse pesadelo histérico, cujas imagens medonhas se formam a partir de nauseante falácia e negação a uma profunda reflexão sobre as coisas. Só há uma maneira de atravessar o rio da História: É tomando a própria História como bote salva-vidas. Que sobrevivamos à ignorância reinante e que o bom-senso prevaleça sobre a estupidez que se tornou regra. Difícil escrever sobre coisas belas, que nos dão prazer, enquanto o horror nos tira o sono. Que um dia consigamos dormir em paz. Infelizmente, em nenhum momento da história de nosso país eu tive esse prazer...

Valeu, Emerson, pela leitura. Te amo sempre.

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