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domingo, 20 de dezembro de 2015

GESTO

Esta crônica bem poderia se chamar “ O Verdadeiro Espírito de Natal”.
Ou “Amigo é Pra Essas Coisas”. Ou “O Amigo Não Oculto”. Nada disso.
Tudo clichê e piegas. Muito aquém do conteúdo da história.
Preferi intitulá-la “Gesto. ”

Mas antes fui no Houaiss. Gesto: movimento do corpo, principalmente
das mãos, dos braços e da cabeça. Mímica, aceno, sinal. “Com um simples
gesto, expressou pensamento e sentimento. ”

Era isso. Agora vamos à prosa.

Sempre gostei de levar os olhos para passear em livrarias. Numa dessas
incursões, olhei um livro, o livro olhou para mim – foi amor à primeira
vista - e vislumbrei na capa, no toque e no primeiro folhear, a lembrança
de um amigo de vital importância na minha jornada “Since 1988”-
diria o rótulo de um notável vinho saboroso.

Tive razões e emoções para pensar no amigo: tratava-se de um assunto muito
comum a nós, o foco de uma época em que, se não a vivemos juntos,
a tornamos contemporânea em nossas
longas e profícuas conversas.

Comprei o livro. E no dia seguinte cheguei para um encontro com o meu amigo
com ele na mão, embrulhado como manda o figurino. E cheguei logo dizendo.

- Olha, quero te dar um presente de Natal. Talvez você já tenha, talvez 
você nem queira ler (acho difícil). Mas tome este pacote como um gesto 
de afeto.

Abre parêntese. Sempre me incomodou o fato de uma pessoa determinar o
que quer ganhar de presente de Natal, seja no amigo oculto, no pé da
árvore natalina ou no sapatinho na janela. Presente para mim não é obrigação.
Longe de ser algo utilitário, funcional, que alguém esteja precisando.
Presente é lembrança. É a expressão mais literal, pura e sincera de que
você lembrou com carinho da pessoa a quem se destina. Fecha parêntese.

Meu amigo brilhou o olhar diante do embrulho. E estraçalhou o papel bonito,
feliz como a criança que nos habita ao longo da vida. Até que soltou uma
gargalhada, seguida de outra expressão pura e sincera:

- Putaquepariu! Comprei esse livro ontem!

- Não faz mal, - disse eu. Você pode trocá-lo, passar adiante, ou enfeitar 
a estante. O importante é o gesto.

- Claro que o importante é o gesto. Tanto que quero retribuir. 
Eu pensaria neste mesmo presente para você. Portanto, ele é seu.

Numa leitura amarga – como bem convém aos nossos tempos de escárnio,
iniquidade, lama, ódio, estupidez, cinismo, deselegância, indelicadezas
e desesperança – eu diria que ele devolveu o presente.

Mas, não. Senti que ele tinha me devolvido um gesto de afeto.
Havia algo de carinhoso e criativo no ar, emblemático do nosso cultivo
de espírito. E nos abraçamos às gargalhadas, sem muitas palavras,
mas com o calor das amizades sinceras e dos gestos que ficam para sempre.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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