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quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Aqualung


Henry Alfred Bugalho

As pregas da saia subiam e desciam, na cadência da corda a girar.
Do outro lado da cerca, sentado na calçada, queixo apoiado nos punhos, cão sarnento a dormir ao lado, o mendigo torcia para que uma lufada, terríveis neste inverno, viesse e erguesse a saia da menina ainda mais. Era incrível como, mesmo em dias gelados, as colegiais ainda mostravam as coxas; acima delas, calcinhas brancas, disto o mendigo tinha certeza.
Frio por fora, frio por dentro. O mendigo esfregou a manga do casaco na cara, arrancando ranho congelado. Um chá cairia bem, o mendigo pensou. Uma lareira cairia bem, o cão pensou.
O sinal para o fim do recreio ressoou e as crianças desapareceram do pátio. Apenas uma exceção: a Vesga.
O mendigo que olhava as colegiais era observado pela Vesga, a colegial. A Vesga já havia reparado no mendigo, ali todas as tardes, do outro lado da rua. Às vezes, ele enfiava uma mão dentro da calça. Desde o mundo encantado da Vesga — uma mansão, carro luxuoso, a melhor escola da cidade e uma gorda mesada —, a vida dum mendigo, nas ruas, era inconcebível, porém encantadora. Ela trocaria tudo para, por um único dia, deixar o castelo imaginário de seu pai e se aventurar no mundo real daquele homem.
E aquela seria a oportunidade.
O buraco na grade havia sido feito pelos meninos, quando queriam fugir do colégio e fumar nos becos da vizinhança. Poucas meninas se arriscavam a sair, geralmente de mãos dadas com um namoradinho assanhado. A Vesga se espreitou pela brecha, rasgou a blusa no arame, mas tudo deu certo. Estava livre!
Atravessou a rua com passos rápidos. Foi então que o olhar vazio do mendigo a traspassou. O cão ameaçou latir, mas levou do dono um tapa nas fuças, resmungou e se deitou acabrunhado.
— O recreio acabou. As freiras vão te dar uma sova, o mendigo sorriu, cheio de dentes podres. Não mentia, as freiras eram realmente terríveis.
— Que se danem as freiras, a Vesga retrucou — Está com fome?
O mendigo fez que sim.
A Vesga revirou os bolsos e tirou um bolo de notas, amassadas:
— Podemos comprar algo pra comer.
Fazia tempo que o mendigo não via tanto dinheiro duma só vez. Não era muito, mas era muito mais do que costumava conseguir.
— Tem mais de onde este veio, a Vesga comentou, ao constatar o brilho de ganância nos olhos do mendigo.
— Melhor ainda, ele coçou a barba. O cachorro também se coçou, pulgas.
***
A Vesga trouxe o lanche num embrulho e um copo de chá. Não permitiram que o mendigo entrasse na lanchonete.
Eles se sentaram num banco de praça e o mendigo engoliu o pão com mortadela duma vez só, mascava de boca aberta, migalhas saltavam pra fora.
— Onde você vai passar o Natal? — a Vesga perguntou.
— No mesmo lugar de sempre... Na rua — era o décimo terceiro ano de indigência, Jameson, o vira-lata, o acompanhava há dois.
— Tenho uma ideia! — a Vesga se levantou, animada — Você terá um Natal de rei este ano.

Dois dias depois, na data em que cristãos do mundo celebram o nascimento do Messias, a Vesga saiu cedo de casa e se encontrou com o mendigo, que a aguardava a umas três quadras de distância.
Juntos, caminharam até um casarão:
— É aqui — a menina disse.
— São amigos seus? — o mendigo olhava para os lados, com medo de que a polícia o visse por aquelas bandas, repleta de casas luxuosas, área de milionários.
— Sim, casa duma amiga. Estão viajando.
— Como vamos entrar se viajam?
— Eu sei onde fica uma cópia da chave, e, ao dizer isto, a Vesga enfiou os dedos num vão no muro de pedra e retirou um chave, enfiou-a na fechadura e a porta se abriu.
Eles entraram num pátio e, depois, no casarão.
— Sinta-se em casa, a Vesga disse, os criados estão de folga.
E foi o que fizeram. A Vesga e o mendigo comeram o que havia na despensa, nadaram na piscina aquecida, assistiram a filmes numa gigantesca TV, jogaram sinuca, o cachorro cagou por todo o lado e, por fim, na biblioteca, se sentaram para relaxar:
— Que vidão, hein! — o mendigo bebericava um copo de uísque.
— Mas de que adianta tudo isto, se a felicidade fica do lado de fora? — a Vesga olhava pela janela. Naquele exato instante, várias famílias felizes deveriam estar comendo um peru de Natal.
— Eu seria feliz se tivesse tudo isto — o mendigo tomou um gole de sua bebida.
— Engano seu. Não conheço homem mais triste do que meu pai. Ter dinheiro não é igual a ser feliz.
Naquela noite, o mendigo dormiu numa cama digna de nobres e, na manhã seguinte, ele e a Vesga deixaram, de mansinho, a casa.
No ônibus para o Centro, a Vesga abriu sua mochila:
— Olha só o que eu encontrei lá — e mostrou a mochila cheia de dinheiro.
— Você roubou aquela gente? — o mendigo se exaltou — Eles vão tirar o nosso couro. A polícia vai nos pegar!
— Que nada! Eles não vão nem dar falta disto. Você não disse que, se tivesse dinheiro, seria feliz? É pra você.
***
O dinheiro foi bem empregado. O mendigo comprou roupas novas, fez a barba, cortou as unhas, comprou até uma escova-de-dentes. Frequentaram restaurantes e foram ao parque-de-diversões. Ao invés da corda de varal, o cão tinha agora uma coleira de couro.
E, no fim do dia, eles dormiam numa mansão diferente, casas de amigas, em viagem, da Vesga. O dinheiro da mochila nunca diminuía, abastecida por novos espólios dos ricaços.
— Você não tem de voltar pra casa? Seu pai deve estar preocupado?
— Está nada. Ele queria um filho homem. É como se eu nem existisse.
Passaram a virada do ano juntos, a bordo dum iate, os fogos-de-artifício explodindo no céu da cidade.
***
— Já tenho sei onde passaremos nossa próxima noite, a Vesga disse.
O mendigo aceitou a sugestão e se encaminharam para outra mansão. A rotina de invadir e aproveitar se repetiu. Deitaram-se para dormir, mas, por volta de uma da manhã, a Vesga acordou, foi até o quarto onde o mendigo dormia e o sacudiu:
— Acho que ouvi um barulho. Tem alguém lá embaixo.
O mendigo olhou pela janela e viu um carro estacionado na frente da casa. Foi para o corredor, havia uma luz acesa no andar térreo.
— Se esconda — ele disse — eu vou descer.
O mendigo apanhou um taco de golfe do closet e desceu as escadas.
Um senhor falava ao telefone:
— Alguém entrou em casa... Está tudo revirado. Não, não sei se roubaram algo, ainda não conferi. Fique aí com as meninas. Ainda vou ligar pra polícia.
Era o dono da casa. O mendigo avançou e deu uma tacada — sem muita força, ele insistiria depois — no cocuruto do senhor, que caiu sem vida. Ele o havia matado, não havia dúvida.
O mendigo subiu ao primeiro andar e chamou pela menina, que apareceu assustada, trazendo o cachorro no colo.
— Junte suas tralhas e vamos embora. Deu merda!
Não havia ônibus naquela hora da madrugada, por isto, tiveram de correr. O mendigo, que inconscientemente carregava o taco de golfe consigo, o jogou de sobre uma ponte. Depois, apanharam um táxi e foram para uma espelunca no Centro, ponto de travestis e prostitutas.
— O que aconteceu? — a Vesga roía as unhas.
— Matei um homem, acho que era o dono da casa.
— Ai, meu Deus! Estamos ferrados.
A Vesga tinha razão. Agora era só esperar a polícia encontrá-los e jogá-los numa cela fétida e superlotada.
***
O assassinato do milionário estava na capa dos jornais, no dia seguinte.
Com o dinheiro que tinham, o mendigo e a Vesga compraram uma passagem de trem e foram para o interior.
— Tenho um amigo lá — ele dizia.
A viagem foi rápida, apenas duas horas. Chegaram a uma cidadezinha pacata, alguns poucos mil habitantes. Foram direto para a Igreja.
O mendigo, a Vesga e o cachorro adentraram a nave do local santo. Uma velha gorda se confessava, o sussurro dela reverberava.
Eles aguardaram o fim da confissão, então o mendigo foi e se ajoelhou:
— Padre, eu pequei.
Silêncio.
— Matei um homem e agora preciso dum abrigo. E sei que você, pelos velhos tempos, me acolherá.
— É você, seu pilantra?
O padre saiu do confessionário e abraçou o mendigo. Murmurando, perguntou:
— Você assassinou alguém?
— Não é tão difícil; você sabe disto melhor do que eu.
— Venha comigo...
O padre os encaminhou à casa paroquial.
— É preciso se arrepender do seu crime, só assim Deus o perdoará — o sacerdote o admoestou.
— Não é porque vim até você que eu acredito nesta ladainha. Deus? Que espécie de Deus é este que permite tanta dor e desgraça no mundo?
— Eu acredito em Deus — a Vesga comentou.
— Pouco me importa... Aliás, é muito fácil pra você, morando num palácio, acreditar em Deus, bondade e justiça. Não é você quem tem de passar vinte e quatro horas por dia na merda. E uma ou duas noites na casa de ricaços não mudaram minha opinião. Este Deus de vocês é um baita dum filho da...
— Não blasfeme! — o padre interrompeu — Não na minha casa! Se a sua vida está deste jeito é porque você fez por merecer. Eu já estive na sua posição e tudo mudou.
— Porque você se vendeu — o mendigo tocou, simulando nojo, a batina do padre — Se vendeu por pão, por uma casa e por uma fé vazia. Não vim aqui para ser convertido.
Nestas horas, a Vesga já estava chorando. A resposta áspera do mendigo a havia magoado.
— Pare de chorar, menina. Acho que você está aprendendo cedo que a vida é um trem desgovernado. E quando esta porcaria de trem descarrila, saia debaixo, não tem mais volta.
O padre os alimentou e deu pouso. Na manhã do terceiro dia, bem cedo, o mendigo e a Vesga arrumaram suas coisas, roubaram toda a prataria do padre e fugiram para a estação de trem; o mendigo estava convencido que era hora de levar a Vesga de volta pra casa.
— Se for para me ferrar, que seja sozinho — ele disse.
— Mas eu não quero ir. Prefiro ficar com você e com Jameson.
— Somos de mundos diferentes, menina, eu pertenço à rua e à sarjeta; você, aos lençóis macios e ao café-da-manhã na cama.
Foi na estação de trem que eles viram o jornalista noticiando na TV:
— A polícia desconfia que o sequestro da filha do banqueiro esteja relacionado ao assassinato do empresário, três noites atrás. Eles pedem a qualquer um que tenha informações sobre o paradeiro deste homem — e o retrato falado do mendigo apareceu na tela —, ligue para as autoridades.
A viagem de retorno foi constrangedora, ambos preocupados demais para conversarem, apenas o cachorro emitia grunhidos esporádicos, escondido dentro duma valise.
Desembarcaram e o mendigo logo percebeu que havia algo errado. As pessoas olhavam-no com desconfiança, sussurravam entre si, e, ao longe, dois policiais caminhavam em sua direção.
— Acabou, menina... — os olhos dele e dela se encontraram, cheios de tristeza.
— Leve-me com você, ela se enrolou nos braços do mendigo, simulando haver ter sido feita refém.
— Basta! — o mendigo tentou se desvencilhar.
— Não, nós vamos juntos.
E o mendigo entrou no jogo.
— Mais um passo e ela morre — ele gritou. Os policiais obedeceram, mas imediatamente sacaram suas pistolas.
As pessoas na estação gritaram, deitaram-se no chão, correram para longe. O mendigo, braço envolvendo a garganta da Vesga, andou vagarosamente para a porta de saída, mas outros policiais chegaram. Lá fora, os faróis das viaturas — vermelhos e azuis — piscavam.
— Largue a garota! Você está cercado, não tem por onde sair! — a frase feita, digna de filme, veio dum megafone.
O mendigo recuou, entrou num banheiro feminino e trancou a porta. Jameson se debatia no interior da valise. Soltaram-no dentro do banheiro.
— Por enquanto, eles não vão entrar — ele disse. Aparentava estar calmo, mas, interiormente, o mendigo estava muito assustado. Desta vez, havia ido longe demais.
— Vai dar tudo certo, a Vesga tentou convencê-lo — Você verá.
— Já está tudo errado, menina. Há um bom coração aí — ele apontou para o peito dela — mas aqui não. Em mim, só há ódio — e o mendigo apontou para si.
Durante horas, os dois permaneceram sentados no chão do banheiro, ouvindo as sirenes da polícia e o negociador berrando pelo megafone.
— Está na hora de ir, ele disse — seu pai deve estar te esperando.
A Vesga estava tão cansada, e com fome, que achou melhor seguir o conselho do mendigo.
— Mas eu volto pra te ajudar.
— Sim, eu sei disto.
Ela se levantou, deu um beijo do rosto do mendigo, acarinhou a cabeça do cachorro, foi até a porta, destrancou-a e saiu.
Alguém gritou de fora:
— Ele soltou a refém.
Poucos segundos depois, a polícia invadiu, empunhando rifles, dispararam sem perdão.
***
O banqueiro abriu os braços e agarrou a filha.
— Meu Deus, quanta preocupação! Que bom que você está segura, ele disse.
Depois, a frieza usual se impôs, ele se levantou e disse:
— O jantar será servido às oito. Suba, tome um banho e desça para a refeição.
A Vesga já havia recebido a notícia da morte do mendigo. Todos a congratulavam por ter escapado viva da mão daquele bandido. Até interpretaram o choro dela como se fosse de alívio.
Ela obedeceu ao pai. Subiu a seu quarto tomou um banho e vestiu seu pijama. Ouviu, então, um latido vindo do outro lado do muro. Ela olhou pela janela, só que estava escuro e ela não conseguiu ver nada.
Desceu, saiu de casa e foi até a rua. Jameson estava lá, abandando o rabo, língua pra fora e um tanto trêmulo por causa do frio.
— Como você conseguiu me encontrar, Jameson? — a Vesga o apertou contra si, e era como se prestasse uma homenagem ao próprio mendigo. Ela o trouxe pra dentro, deu-lhe um bife cru e o deixou deitar na cama com ela.
Mas a lembrança do mendigo não a deixava dormir. Algo havia mudado nela, os lençóis macios já não bastavam.
***
O banqueiro despertou e foi até o quarto da filha. A cama estava desarrumada, porém não encontrou ninguém.
Perguntou à criadagem, mas não a haviam visto.
Por fim, foi ao escritório, e descobriu o cofre aberto. Pelo menos uns duzentos mil dólares estavam faltando. Apenas naquele instante o pai percebeu quem estava por detrás de toda a confusão dos últimos dias.
Consumido pela raiva, ele urrou:
— Sua ingrata desgraçada!

A Vesga e Jameson já estavam muito longe, sacolejando num trem, rumo ao litoral.
— Tenho certeza de que seu dono teria adorado conhecer o mar. Se a vida é um trem desgovernado, como ele disse, então vamos aproveitar a viagem da melhor maneira possível.

Conto publicado pela MojoBooks em dez/2008

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