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quinta-feira, 16 de abril de 2015

O menino

São os olhos dele que não me deixam dormir. Os olhos opacos, estáticos, engessados, pousados na ausência. Eles não pedem, esses olhos. Não se movem em buscas. Sabem que seja nos arredores, seja no imensurável do longe, o que há é o nada. Não, não é. Antes fosse o nada. Esse vazio que não acalenta, mas que também não dói. O que cerca esses olhos vazios é o tudo. O inalcançável e esfuziante colorido do tudo. Que não lhe pertence. 
Ele apenas desistiu. Sabe que os vidros das vitrines foram feitos para promover o apartheid do pão. Ele sabe — aprendeu nas aulas de cotidiano — que lugar de menino pobre e preto é no sinal dos cruzamentos, nos montes de lixo, nos becos do morro, no papelão das caixas desmembradas em camas, na porta dos cafés pedindo um trocado e ganhando deboche. E limpa com cuspe o sangue do dedo que machucou na véspera. E cheira um pouco de thinner pra matar a fome que nem é de véspera. E não volta para o barraco pobre onde vive com a mãe porque lá agora tem um homem que faz a sua mãe de pasto, e que faz os filhos da sua mãe de pasto. 
Ele não quer olhar mais nada. Não quer ver o que não pode ter. Nem quer ver o que incomoda. Como a piedade nos olhos da mulher que lhe trouxe comida. Foi ontem? Ou anteontem? Ela passou as mãos nos seus cabelos sujos e emaranhados e sorriu e perguntou o nome dele e sorriu de novo. Depois lhe deu a marmita embrulhada num saco de plástico branco. E ele não aguentou. Sentiu o corpo esquentando, tremendo, se preparando para um abraço que não existiria. Mas existiu. Existiu, sim. E aí ela foi embora. Tinha mesmo que ir. Todos vão. 
Por isso ele não quer mais ver. Não ia suportar outro sorriso. Não para depois ter que olhar novamente para a feiura das calçadas cheias de escarros. Ter que olhar para a lata de cola, para os pés descalços, para o dedo sujo de sangue que ele vai limpar mais uma vez com a saliva grossa. Ele não quer mais ver o sol que é amarelo como o dos desenhos dos meninos que ele viu no mural do pátio da escolinha. Viu pela grade. E achou bonito. E quis ter lápis de cor de ponta afiada para desenhar um sol para si mesmo. Para guardar no bolso do short surrado e iluminar o breu do medo.
Ele não quer mais ver o que é bonito. Nem o céu cheio de estrelas, nem as nuvens gordas e brancas, nem os desenhos dos meninos, nem o sorriso da moça que acarinha os seus cabelos. Ver é sofrimento. Desejo de mais. E ele não quer, não pode. 
São os olhos dele que me mordem os sentidos. Até ontem, opacos, apáticos, tão cheios de renúncia. Hoje, dois buracos fundos de onde escorre o sangue ainda vivo que ele limpa com saliva. Dizem que furou com um lápis de cor. Para desenhar um sol por dentro.
Ele agora quase sorri. Eu sigo adiante. Com os meus olhos culpados.


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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


5 comentários:

Deus meu, que dor esse texto! Espetacular na forma e conteúdo, você consegue atingir em cheio o nosso sentimento de culpa e impotência diante da miséria. Parabéns, Cinthia, parabéns demais!

"Ele agora quase sorri. Eu sigo adiante. Com os meus olhos culpados."
Como sempre um belo e forte texto, desses que batem fundo na alma, como um soso na boca do estômago... Parabéns, Cinthia!

Um dos textos que não me canso de ler.
Parabéns, Cinthia Kriemler.

Obrigada, amigos, pela leitura e pelos comentários!

Parabéns muita sensibilidade neste texto!

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