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sábado, 26 de julho de 2014

Essa tal de intolerância

Agora deram pra demonizar o leite de vaca. Ele virou o grande vilão do universo, culpado da gastrite, flatulência, sinusite, dificuldade respiratória, gota, câncer e até da impotência. Hoje o discurso dos médicos e nutricionistas é o seguinte: “Se você quiser viver pelo menos cinquenta anos, até pode beber cachaça e comer torresmo, mas não caia na tentação da lasquinha de requeijão”. Puro exagero, injustiça pura.

Minha sobrinha chegou aqui em Tiradentes já avisando: “Nada de leite de vaca para o Caio, porque não lhe cai bem. Ele é intolerante, assim como eu”. Onde já se viu negar alimento sagrado a um menino de cinco anos? Foi a base da alimentação dos meus bisavós, dos meus avós, dos meus pais. Eu fui criado no leite gordo. Catarina também: tomava leitinho no curral, quando pequena. Agora, ela tira do pobre do Caio todo o leite, queijo, pão de queijo, canjica e o curau de milho verde. Pronto. Sou eu quem decreto: “Em Minas Gerais, não existe alergia nem intolerância a lactose”.

Depois que foi pra Brasília, mudou muito de jeito, a Catarina. Quando morava no Triângulo e quando veio pra Tiradentes, até bem pouco tempo antes de casar, adorava um doce de leite. Comia cada talho gordo de goiabada com queijo! Agora, encheu-se de frescura. Tem nojo de nata. Enjoa só de ver a gordura do leite fervido. E tem outra, pra piorar: meteu-se a especialista em gastronomia. Vive listando umas comidas requintadas que ela provou ou que cozinhou. Sente o maior prazer em esnobar os “minerim”.

Acha que a Catarina voltou, depois de vários anos longe, só pra visitar o titio querido? Nada disso. Como jornalista, veio cobrir um festival “gourmético” internacional que está na cidade. Ela tinha até marcado uma entrevista com o Alex Atala; mas de última hora ele não veio, porque seu D.O.M. ia receber uns gringos ilustres neste fim de semana.

Aí, o jeito foi ela conversar com um outro chefe chatonildo, entendido de culinária estrangeira. O tal Jean Rond está abrindo um restaurante francês na nossa terra. Se esse cara metido a cozinheiro tivesse perguntado a minha opinião antes de abrir o negócio, eu lhe diria que é perda de tempo e dinheiro. O povo gosta mesmo é de tutu de feijão, costelinha de porco curtida na banha, frango caipira no açafrão, com quiabo e angu. A pizza também já caiu no gosto do mineiro; mas comidinha francesa — argentina, japonesa ou chinesa —, nem empurrando goela abaixo. Isso não funciona em Tiradentes, pessoal. Nem em ‘Beraba e ‘Berlândia, nem em Ouro Preto e Mariana. O mineiro não tem apetite requintado.

Ouvi minha sobrinha entrevistar o barrigudão. Do jeito que ele fala, balançando as medalhas que recebeu e citando os famosos que apreciam seu tempero, a clientela daqui já está fisgada. Apareceu nas rádios tiradentinas, no MGTV e esteve até no programa da Ana Maria Braga, onde ensinou uma receita de mousse de truta defumada. Todo detalhista, o moço. Disse como prepara o risoto de laranja e o arroz de cogumelos e revelou o segredo do magret de pato. Uma mistureba feia! Ele abusa dum tal alho porró. (Que porra é essa? Você conhece?)

Catarina ficou toda encantada com o cozinheiro. A prosa demorou horas. A jornalista anotou detalhes sobre o carro-chefe do restaurante, o famoso coq au vin, um frango metido a besta que certamente não chega aos pés da galinha caipira feita pela minha mãe. O pançudo usa cada trem esquisito! Ele diz que, na culinária contemporânea, é preciso misturar ingredientes inusitados. Trouxe até umas ervas haitianas para compor os pratos (será que aquele povo só come ramo, meu Deus?). Recomendou alguns vinhos da moda — à venda em seu restaurante — e entortou a boca para anunciar que o estabelecimento já nasce cinco estrelas.

Você acha que a Catarina jantou algum dia com a gente? Não, senhor. Fez a maior desfeita com a tia-avó. Não vou contar a ela, não, porque não vem ao caso; mas fiquei triste, triste mesmo com a conduta da minha sobrinha. Ela testou todo o cardápio do pseudofrancês, esnobando as iguarias que havia provado, e não deu a mínima para a tradicional comida mineira aqui de casa.

Minha mãe lhe perguntou se Jean Rond servia doce de leite de sobremesa.

— Não, tia. Só comi torta, mousse e petit gâteau — tudo feito à base de leite de soja e leite de amêndoas. O Jean tem um cardápio variado para quem é intolerante. Até o creme de leite que ele usa no estrogonofe de camarão é vegetal. Um primor, sem um pingo de lactose!

Trem difícil é ver uma sobrinha negando as raízes, cuspindo no copo que bebeu. Mas tudo bem. Quem não tolera esse papo de gourmet virtuose sou eu. Sei que comida boa é a nossa, simples, mas nutritiva. Enquanto Catarina comia aqueles pratinhos frufru no restaurante do João Roliço, o Caio estava aqui com a gente, devorando, feliz da vida, um punhado de pão de queijo com recheio de requeijão.


MARIA AMÉLIA ELÓI


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5 comentários:

Eh, eh! Há que defender da globalização o que de bom temos e somos.

Mas que texto excelente! Realmente, com a fome varrendo o mundo, é de se espantar tanta intolerância. Quem quiser (e tiver intolerância) que escolha, mas daí a impor aos que o cercam, valha-nos!

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