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domingo, 18 de novembro de 2012

FANDANGO DA SAPATILHA


Crônica (quase um causo) de Campanha.
                                                                                                                    Otávio Martins 
 
 Era a grande chance para que a cidade tirasse o pé do barro. Precisaria, apenas, que todos somassem esforços para os preparativos de uma recepção em grande estilo para receber visita tão ilustre.

   Deixando de lado as velhas divergências, uniram-se - inclusive os políticos – com o propósito de atrair o senhor ministro e mostrar-lhe que a cidade poderia, sim, superar aquela situação caótica que atravessava. Para isso precisava, e com urgência, tão somente de verbas.

   Na reunião, que transcorria no salão nobre da prefeitura, compareceu gente de tudo que era canto da cidade. Seria preciso definir uma estratégia e, principalmente, que impressionasse o senhor ministro e sua ilustre comitiva.

    O prefeito já havia pedido a todos os cidadãos que se reunissem em suas comunidades e trouxessem propostas e, também, de que forma cada uma delas poderia colaborar.

   Praticamente, todos os setores da sociedade foram convocados.

   A sugestão que pareceu mais feliz foi trazida por Dona Zaida, mulher do coronel Gumercindo Alcântara Ferraz, patrão do CTG “Garra Farroupilha”. O coronel, como quase todos os outros fazendeiros da região, estava completamente quebrado.   Tinha tentado o arroz, mas as duas últimas safras foram pra arrebentar.   Ex-fazendeiro e ex-arrozeiro e, também, pode-se dizer, ex-coronel, pois a “patente” de coronel, a ele conferida, era justamente pela condição de forte fazendeiro.   Mas, o Coronel e a Dona Zaida, ainda gozavam de algum prestígio; foi o que restou dos bons tempos, antes da cidade ter embarcado numa aventura financeira, ocasião em que caiu no conto do dinheiro fácil, aplicado por tal de Gambôa. O ministro era a única salvação das lavouras, das fazendas e de toda a cidade.

   Com aprovação unânime, um grande fandango seria, sem dúvida, a maneira mais alegre e descontraída; também, a mais democrática, oportunidade onde todos poderiam participar independente do nível social, raça ou religião e serviria, ainda, para mostrar a força e a arte do seu povo. Passariam o pires com dignidade e muita alegria.

   Dona Zaida foi à luta.   Reuniu-se com outras senhoras da alta sociedade que, bem dizer, eram as mesmas que freqüentavam o “Garra”. Setembrino, o assador oficial do coronel Gumercindo Alcântara Ferraz, já estava escalado. Iria ser uma festa “com muito churrasco, cerveja, vinho e, principalmente, muita dança e cantoria”, prometia a anfitriã. Valeria à pena essas pequenas despesas que, certamente, seriam cobertas, ou repostas, por ocasião da liberação das tão esperadas verbas por parte do senhor ministro.

   Na reunião, que foi realizada no CTG, já pra ir pegando o clima, Dona Zaida assumia a liderança dos preparativos.   Algumas amigas, talvez por inveja, costumavam dizer que ela era um tanto prepotente.  Mas, era o jeito dela, assim mesmo. Não obstante, mandou o veneno: “Vou encomendar a roupa do Gugu, com o Carlos Orestes”. Foi o bastante para que os preparativos se transformassem numa pré Fest Fashion Campeira.

   Carlos Orestes era o estilista mais famoso da região da campanha.  Em resposta, Belinha, a mais nova do grupo, anunciou que o Rafa – seu namorado – viria pra arrasar. Isabel Cunha Lemos era diretora do Centro Municipal de Belas Artes e responsável pelas aulas de balé. A moda pegou.  As mulheres preparavam seus companheiros para a grande noite no CTG “Garra Farroupilha”, o mais bem frequentado da cidade.

   Assim, a cidade foi-se agitando na expectativa da visita do senhor ministro.   Os homens, principalmente os políticos, participavam de tensas reuniões, onde exibiam os seus planos, ou projetos, para demonstrar como pretendiam convencer o senhor ministro a liberar as tais verbas.  As mulheres, enquanto isso, organizavam, cuidadosamente, o que oferecer em troca de uma possível gentileza.  Tinham lá as suas disputas – picuinhas – mas, nessas circunstâncias, estariam unidas em torno da mesma causa. O lema, óbvio, “mulheres unidas, jamais serão vencidas”.

     A palavra de ordem era inovar.   Mostrar ao senhor ministro e sua comitiva - da qual fazia parte a sua esposa - ainda que preservando os traços de suas tradições, tinham as antenas voltadas para o futuro. Através da arte, poderiam demonstrar a sua capacidade em acompanhar as mudanças exigidas pelos novos tempos da globalização, tão difundidas através dos meios de comunicação de massa.
                              
    Dona Zaida “era assim” com o Wawá Maravilha, o Oswaldo Mendes de Carvalho, coreógrafo do mesmo Centro de Belas Artes, onde Isabel era diretora, e que também ensaiava alguns grupos de danças do CTG.  Soou como uma ordem.

   Imediatamente deu-se início aos ensaios.  Com os pés no seu tempo e a inquietude no futuro, Wawá passou a criar coreografias, onde misturava movimentos e passos de danças tradicionais gaúchas – como a “Dança do Pezinho” – ao que de mais novo era conhecido em matéria de dança popular levada nos grandes centros.

   Na “Dança do Garrafão”, agregava, no mínimo, dois novos elementos, os quais exigiam precisão e perfeito sincronismo.  O casal, de frente um para o outro, com as pernas entreveradas, desciam num frenético vai-e-vem, da cintura para baixo, até os fundilhos encostarem-se na boca de um garrafão de cinco litros de vinho (símbolo de exportação), e de vez em quando um acarinhava o tchan do outro, assim, na manha, com muita sensualidade.  O pessoal estava achando maravilhoso aquilo tudo, a não ser um ou outro comentário meio moralista do seu Justino, encarregado da copa: “Isso é uma poca vergonha”.  Mas, que também, já tinha se entupido de vinho.  Talvez por isso o pessoal não tivesse dado muita bola, aderindo com muito gosto e frenesi.

   Agora, a sugestão vinha por parte de dona Rosa da Conceição: já que era uma festa popular e, assim, tão descontraída, que os homens deixassem as suas botas fechadas e pesadas de lado e fosse obrigatório o uso de sapatilhas, já há um bom tempo incorporado – talvez pelo baixo preço - à indumentária do gaúcho.    Isabel adorou, batizando a festa com o nome de “Fandango da Sapatilha”.  Planejando brilhar na grande noite, propôs que, em homenagem à esposa do Ministro, fosse organizado um concurso, não só dos trajes dos cavalheiros, mas que, também, estes, individualmente, apresentassem uma coreografia - puxando a sardinha para a sua brasa.  Dessa forma, os homens passariam a ser a atração da festa.

   Prometia um belo duelo.  Gumercindo de Alcântara Ferraz, o Gugu, como o chamava, carinhosamente, dona Zaida, contaria com o figurino de Carlos Orestes e uma bem cuidada coreografia do Wawá Maravilha, arquiinimigo da sua diretora no Centro Municipal de Belas Artes, a Isabel. A diretora, que por sua vez responderia pelo figurino e a coreografia do seu namorado, o Rafael Pinto de Almeida, filho de outro fazendeiro quebrado da região, coronel Genésio e, endividado, como todos os outros, até aqui, com o Banco do Brasil. Rafael, a bem da verdade, era amarrado num uísque.
   A cerveja corria solta.   Setembrino andava as voltas com tanta carne; um calor infernal.   Os garrafões de vinho iam sendo esvaziados numa velocidade estonteante e usados na dança criada por Wavá, que, inegavelmente, fazia um grande sucesso. Vista assim de longe, um verdadeiro bacanal coreografado.  Seu Justino, na copa, já pra lá de Bagdá, emprestava os garrafões um pouco a contragosto, mas de vez em quando soltava uma piadinha, tipo, “cuidado, que o gargalo engana; o grosso, vem depois”.   O “cardápio” era com base no gosto do coronel Gumercindo.  Setembrino não perdia a mania de agradar o Coronel, desde os tempos de antão: carne bem gorda e não poderia faltar o salsichão de porco.  A maioria foi pra comer e beber, mesmo.  O churrasco andava meio raro, a carne, com o preço aos olhos da cara. A cerveja já a três e cinquenta em qualquer boteco da cidade.

   A comitiva ministerial já estava um tanto atrasada.   Aquela era a terceira cidade que visitaria naquele dia de ano eleitoral.   E isso aumentava ainda mais a expectativa dos participantes que, num estado tal de ansiedade, comiam e bebiam feitos uns condenados.  Quando o senhor ministro adentrou o “Garra Farroupilha”, já entrava a madrugada.

   Carlos Orestes explicava lá à sua maneira, pra dona Zaida, o resultado de sua criação para a roupa do seu Gugu. Maldosamente comentavam - à boca pequena - que ele estava mais pra odalisca do que para um verdadeiro gaúcho.  Talvez pela escolha do tecido meio transparente das bombachinhas - estilo baloné - e o colete arredondado nas pontas e na altura da gola; ficara, assim, uma espécie de bolerinho.   O problema nem era esse.  O coronel Gumercindo exagerou na carne de ovelha, muito pesada e, também, o vinho misturado com cerveja não lhe caía muito bem. E ainda faltava encarar o concurso de fantasia e a tal de coreografia.  Dona Zaida fez-lhe uma advertência ao pé do ouvido, tendo sido um pouco enérgica: "Se tu me caíres no meio do salão, eu te capo”.  Foi o que manteve o coronel Gumercindo em pé, no justo tempo de atravessar, cambaleante, numa velocidade forçosamente acelerada, de um lado ao outro do salão. “É na estrutura do ziguezague que o bêbado se garante”, comentou Januário, o espirituoso gaiteiro, depois de muitos copos de vinho e de tocar alguns vanerões sambados.

    O Coronel nem arriscou os dois corrupios no estilo piorra loca e o fechamento em arabesque, previstos na coreografia do Wawá, que estava possesso com o mau desempenho do seu pupilo. “Tudo por água abaixo!”, lamentava.   Isabel contava nisso uma vantagem.  Porém, não percebera que o Rafa já fazia mais de meia hora que não piscava; totalmente empedrado. “Drurys é fogo!”, tentava justificar o amigo que lhe dava uma força naqueles momentos que antecediam à sua apresentação.  Bons tempos do Johnnie Walker, Black label! E também, que era a estréia do Rafa nas sapatilhas de ponta.  Ainda assim, cumpriu os primeiros passos d’A Morte do Cisne, precipitando o “gran-finale” ao desabar nos braços de Isabel, que contava humilhar o seu principal concorrente, o mestre Wawá. Tudo acabou num melancólico zero a zero.

   A comitiva, assim como veio, partiu.  O prefeito jamais havia colocado uma gota de álcool na boca antes daquele fandango; além de pertencer à Igreja, tinha uma úlcera nervosa que o incomodava há anos.  Vinho tinto de garrafão, com muito calor, todo mundo sabe, provoca um efeito arrasador.  Diante do senhor ministro, não deu uma só palavra.

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2 comentários:

Muito saboroso! A abundância de pormenores foi determinante. Mesmo sem conhecer o folclore gaúcho, deu para entrever o descontrole metido a festa sofisticada.

Havia postado ontem, mas não saiu.
Prezado Joaquim, agradeço a sua reincidência. Meu imeio é nb.jornal@yahoo.com.br Gostaria de ler algo seu. Abraços, Otávio.

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