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sábado, 5 de junho de 2010

Como o Melro no seu Dragoeiro

Joaquim Bispo



O nome de baptismo era Armindo, mas «Rolhas» foi o que começaram a chamar-lhe, desde que a namorada o deixou e ele começou a pedir rolhas ao Sr. Mário do Estrela – um restaurante na Calçada da Ajuda – ninguém sabia para quê.
Desde pequeno, era um miúdo metido consigo, e o facto de ser muito magro e alto, também não ajudava a fazer amizades. O pai era «arrasta» na praça da Ribeira e a mãe vendia hortaliça, de manhã, na praça da Travessa da Boa-Hora. Nem para uma coisa nem para a outra arranjaram, os pais, maneira de o entusiasmar. De vez em quando, a mãe conseguia que lhe dessem trabalho – carregador em lojas de móveis, marçano em mercearias – mas rapidamente abandonava o trabalho, quando não era o patrão a dizer à mãe que o rapaz andava sempre nas nuvens e não dava conta do recado. Deambulava pelo bairro da Ajuda e do Caramão ou refugiava-se na mata de Montes Claros. Ou então, isolava-se na biblioteca do Centro Paroquial a ler poesia. Numa dessas vezes, escreveu nas costas do cartão de sócio:

Vagueio por um mundo que me não conhece
A minha alma anseia o além


Aí pelos dezanove anos, começou a namorar com uma vizinha, a Alcina, que achava graça ao seu ar desajeitado. Sentavam-se aos domingos num banco do Jardim Botânico, debaixo dum choupo. Ele recitava-lhe pequenos poemas de Cesário Verde e ela sentia que não havia nenhum homem tão sensível como o Armindo. Numa dessas tardes, à sombra do choupo, ele recitou-lhe um poema de sua autoria, como se fosse de Cesário, para ver se ela notava a diferença. Começava assim:

Olhaste-me graciosa e prazenteira
Como se eu fora de todos o mais nobre…

Ela não notou diferença, o que muito o envaideceu. Foi um namoro agradável e alegre, enquanto durou. Passado um ano, Alcina sentiu que a mesa não se ia guarnecer com poesia e passou-se para o filho do dono da serralharia do Altinho, com o qual casou pouco depois. Foi um rude golpe para Armindo. Alguns diziam que o moço desatinara e apontavam o facto de ter passado a andar sempre com um bolso cheio de rolhas de cortiça. Por essa altura escreveu numa carteira de fósforos:

O poema só brota nos peitos esfacelados

Uns meses depois, um tio, que trabalhava no Jardim Tropical, puxou-o para jardineiro. Tratar das plantas e dos canteiros, manter o jardim limpo, eram tarefas que lhe agradavam. O contacto com as plantas e os animais, a percepção dos seus ciclos, faziam-no sentir-se em comunhão com o mistério da Natureza. Escrevia:

Deixa a palmeira para a algazarra dos pardais
e a araucária para o bulício dos demais!
Na paz do dragoeiro faz, melro, o teu poleiro!


Quando ganhou experiência, encarregaram-no dos alfobres nas estufas, onde pode trabalhar sozinho, como gosta. Prepara as pequenas leiras de terra, semeia e cobre as sementes, identifica as plantações, rega as pequenas plantas quando rebentam, transfere-as para vasos ou canteiros, quando atingem tamanho adequado, e cuida delas até serem mudadas para o ar livre.
Embora atento ao que faz, a sua mente arquitecta frases, avalia rimas e sonoridades, sobretudo ausculta o coração. Depois, à hora de almoço, senta-se num banco e verte, num caderno de papel colorido, o que o íntimo lhe inspira:

Todo o caule por minhas mãos tange.
Esgrimo da mandrágora o alfange,
o aloendro murmura e range.


Quando o dia de trabalho termina, dirige-se para a beira-rio, a jusante da estação dos barcos, com uma bolsa de pano a tiracolo. Senta-se no paredão e fica a olhar o rio. «Para onde irão todas aquelas águas? Alguém lhes marca o destino? Certo é que seguem decididas, na direcção do sol-pôr. Outras pessoas as irão contemplar, lá longe.»
Armindo tira então da bolsa, uma garrafa vazia de vidro transparente, separa a folha de caderno com o seu pequeno poema, enrola-a, ata-a com um junco seco e introdu-la meticulosamente na garrafa. Num ritual sempre igual, tira do bolso uma das rolhas e veda a garrafa cuidadosamente. Então, levanta-se e atira a garrafa ao rio, tão longe quanto a sua força alcança. Solene, fica a observá-la, primeiro com o gargalo a esbracejar, como se apelasse por socorro, depois num suave gesto de adeus e, por fim, a deslizar lentamente, imperceptivelmente, em direcção ao mar.





À noite, antes de adormecer, com o «Só» de António Nobre à cabeceira, sente às vezes algo indefinível, como que uma sintonia com um espírito desconhecido, mas tão íntimo como si próprio. Gosta de imaginar que, lá longe, numa praia remota, do outro lado do Atlântico, alguém, vagueando ao sabor dos seus pensamentos solitários, encontra uma das suas garrafas e lê:

Penso em ti,
minha amiga, alma gémea, minha irmã.
Só e triste. Anseio por te conhecer.
Pensa em mim, assim nos vamos encontrar!

E adormece mansamente.







Júlio (dos Reis Pereira), Aguarela da série “Poeta”, 1939.
Colecção particular.

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