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terça-feira, 18 de agosto de 2009

A faixa branca

Joaquim Bispo

Ah, a Irlanda! – a ilha que tem o permanente verde dos campos na bandeira. Há quem diga que a faixa alaranjada no outro extremo da bandeira é a cor do uísque. Ah, os pubs, a festa, a herança celta. E a faixa branca, a meio, significa o quê – pureza?
Um relatório agora divulgado revela que durante sessenta anos – desde 1930 até 1990 –, pelo menos duas mil crianças carenciadas, que tinham sido acolhidas por instituições religiosas católicas, foram objecto de violência e abusos sexuais. O facto choca, sobretudo porque os acontecimentos tiveram lugar em abrigos infantis, reformatórios e orfanatos geridos pela Igreja Católica, largamente maioritária no país. Pensamos sempre que os homens e as mulheres da Igreja estão, tendencialmente, acima dos «pecados» da carne, só porque o potentado religioso que os enquadra a isso aspira, ou pelo menos apregoa. Grave erro: as pessoas que o integram são da mesma carne e pulsam com o mesmo desatino hormonal que as que festejam o corpo e a vida fora dos espaços religiosos. Refugiaram-se nas instituições católicas pelas mais variadas razões, quase nunca para renunciarem ao apelo das sensações lúbricas. Nem tal lhes é exigido. Mesmo aos padres, a Igreja proíbe-lhes o casamento, não pela subjacente implicação de mais difícil acesso ao sexo mas – diz-se – por um mais prosaico programa de evitar o forçoso sorvedouro de bens, necessários para alimentar e vestir cônjuge e filhos.
Não é a Igreja que faz os pedófilos; também nas instituições governamentais sucede o abuso. O ambiente colectivo nos locais de acolhimento, onde os mais velhos dispõem de ascendente sobre aqueles que estão à sua guarda, proporciona a oportunidade adequada às práticas do pedófilo. A proximidade, o espírito de ajuda, de protecção, cria, por vezes, aquela intimidade perturbadora a que o pedófilo não resiste. A evolução é progressiva. Um dia, ajuda a criança a vestir-se, sente-lhe o morno da pele, a suavidade do cabelo; outro dia, observa-lhe a cor límpida dos olhos, a forma germinante dum corpo a meio caminho da floração; recorda o seu próprio corpo e as emoções perturbadoras da puberdade, às vezes, como um adulto o iniciou nessas emoções. Aos poucos, sobrevém a oportunidade de masturbar a criança. Quer desvendar-lhe esse mundo maravilhoso, que o seu corpo encerra, onde reside um prazer insuspeito. Ele próprio segue o que entende como o desejo da criança, que chega a perceber como uma provocação ao gozo mútuo. Desencadeia e deixa-se enredar, consciente e maliciosamente, numa crónica teia de relacionamento furtivo, sabendo que é um comportamento censurável, a esconder, um segredo para dois. Sente na criança uma aceitação e uma ausência de reprovação que, apenas em algumas raras vezes, julgou encontrar na aproximação a outros adultos, mas que sempre redundou em rejeição e dor. Chega ao sexo oral e à penetração.

A criança gosta de quem mostra querer-lhe bem, de quem a defende nas inúmeras situações de controlo e poder que surgem numa instituição com muitas crianças desenraizadas. Às vezes, encontra nesse adulto o amigo que a ouve e lhe afasta as inquietações. Fica perturbada com as sensações que o adulto ensinou o seu corpo a proporcionar-lhe, aceita responder às carícias como retribuição pedida e justamente merecida. Não domina o jogo das relações sociais; mesmo quando se sente desconfortável, evita denunciar quem sempre parece querer-lhe bem. Afinal, os outros adultos estão emocionalmente muito mais afastados. Sente que é culpada de ter ido tão longe, tem dificuldade em dizer «não». Envergonha-se; sabe como tais situações, quando reveladas, são motivo de escárnio. Isola-se e tenta sobreviver até um dia sair da instituição.

Vamos a contas: no referido período, passaram pelas 250 instituições em causa, entre 30000 e 40000 crianças. No inquérito realizado nos últimos dez anos, 2000, algumas com mais de cinquenta anos, declararam ter sofrido abusos de vários tipos. Outras terão já morrido, certamente.
«Ah, o horror! Inaceitável!», dirão alguns, alarmados com os números. «Danos colaterais. Inevitáveis.», dirão outros, argumentando que se fossem só estas 2000, estaríamos a falar do valor «confortável» de apenas 2 ou 3 crianças abusadas, por instituição, por ano.

Há tanta coisa inaceitável que temos de engolir, infelizmente, desde a miséria nos bairros periféricos das grandes cidades, à invasão arrasadora de países soberanos. Em todas essas situações, há inocentes apanhados nas redes da animalidade humana e traídos pelo bocejo da indiferença social ou internacional. É tão difícil alertar as pessoas, embrenhadas nos seus pequenos problemas. E, mesmo quando alguém para para pensar, o máximo que sente é uma sensação angustiante de impotência. E vai desforrar-se no frigorífico…

Não se sabe o que desencadeia as tendências pedófilas. Nem sempre os abusadores foram abusados, nem sempre os abusados se transformam em abusadores. Há pedófilos violentos, mas, a maior parte das vezes, são apenas o que a palavra indica: gostam mesmo de crianças. Não aceitam que o que fazem é prejudicial à criança, que representa um abuso, uma humilhação que a vai acompanhar pela vida inteira. Se tiverem oportunidade – e é impressionante como são atraídos por relações, actividades e profissões que os aproximem das crianças – vão repetir comportamentos pedófilos, Pelas crianças, que serão adultos magoados, a sociedade tem o dever de tentar minorar as oportunidades de acesso dos pedófilos às crianças, seleccionando criteriosamente quem lida com elas e mantendo uma observação activa sobre o funcionamento dessas instituições. Para que as Irlandas deste mundo sejam apontadas apenas pelos bons motivos: belas paisagens e bom uísque.

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