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terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

O Beijo

Um conto de Denis da Cruz


Interessante como algumas coisas são tão importantes em nossa vida. Aqui, escondido na penumbra desta noite, sinto a tensão do meu desejo.

Estranho reconhecer que minha vida sempre girou em torno de algo aparentemente simples: o beijo.

Quanto tempo faz? Não sei. Minha memória fez questão de expulsar várias coisas por quais passei. Mas desta história me lembro de cada momento.

Allice. Este era seu nome.

- Tom – disse ela naquele passado tão distante. – Meus pais estão muito doentes.

Os cabelos loiros cobriam-lhe o rosto bonito que não ousava erguer-se para mim.

- Mas...

- Por favor, me perdoe – continuou ela. – Eu sei que prometi um beijo. Mas não posso; não agora.

Não me conformei, mas acredito que meu rosto mostrava compreensão. Aquele encontro às escondidas era o momento perfeito para selar a corte que há muito eu vinha fazendo à Allice. Porém, nada saiu como meu coração desejava.

- Você sabe que sou prometida, Tom – finalmente levantou o semblante. Seus olhos azuis mostravam certa súplica – Não posso contrariar meus pais neste momento difícil. Dê-me mais um tempo.

Ela estava certa. Eu era um mero órfão, aprendiz de ferreiro. Não tinha nada para oferecer. Se quiséssemos ficar juntos, teríamos que fugir.

Allice tirou do pescoço uma corrente dourada. Entregou-me com um pingente na forma de um coração.

- Há coisas mais importantes que um simples beijo.

Deu um breve sorriso. Seus lábios vermelhos, tão desejados, afinaram de uma forma que a deixou ainda mais linda. Virou-se ao ouvir o trote distante de um cavalo e saiu do nosso reduto.

Foi-se o meu beijo, ficou em meu coração o ardente desejo.

Por alguns meses, nos comunicamos por pequenos bilhetes. Os pais de Allice não retrocediam na doença e Joe, seu irmão, era nosso pombo-correio. Garoto incrível, sempre alegre; fazia votos para que nosso relacionamento desse certo. O conquistei tempos antes, dando-lhe uma pequena adaga que fiz na forja de meu senhor, usando sobras de metal. A partir daquele dia, Joe foi um fiel escudeiro.

Por mais que o tempo tenha passado, não consigo me livrar das imagens da pior das minhas noites; a escuridão engoliu meus sonhos e levou consigo meu beijo.

Lembro-me bem. Acordei com um som fraco arranhando a janela da ferraria. Vivíamos num povoado pacato, não havia razões para medo. Abri e me deparei com Joe; suas roupas encharcadas de sangue.

Puxei-o para dentro enquanto olhava para a imensidão escura.

- Ele vai levar Allice – disse fracamente. Parecia haver sangue até mesmo dentro das órbitas de seus olhos. – Ele vai matar a todos.

Pude assistir a vida fugindo do corpo de Joe. Eu não sabia do que se tratava, mas se Allice fosse morrer, eu morreria com ela.

Peguei um florete e me apropriei do cavalo do meu senhor. A escuridão me abraçava enquanto meu coração apontava a direção.

As sombras debruçavam pesadas em toda a pequena propriedade da minha amada. Parecia haver movimento apenas no silo. Cavalguei e forcei o cavalo a arrombar as portas com as patas dianteiras.

Queria que o tempo curasse as feridas da mente. Mas não cura. Rasgados no chão do silo, estavam os corpos dos pais e de dois irmãos mais velhos de Allice. Ela estava pouco mais ao fundo; ajoelhada e de vestes brancas, manchadas com o próprio sangue, olhava para mim e para o nada.

Atrás dela um homem lhe segurava pelos cabelos. Sorriu desdenhoso enquanto eu descia do cavalo com o florete empunhado firmemente.

“Ainda posso salvá-la”, lembro-me de ter pensado.

- Tom? – disse o homem sorrindo ainda mais. – Ela me contou sobre você. O garoto que quer um beijo – gargalhou.

- Solte-a! – tentei gritar, mas só consegui que a frase saísse gaguejante.

- Ah, o amor, o beijo; o beijo, o amor – soltou Allice e veio em minha direção.

Meu corpo parecia ter petrificado. Não conseguia tirar meus olhos daquela figura hipnotizante que se fundia as robustas sombras do ambiente.

- Isto é tão lindo. Um rapazote apaixonado que vem para salvar sua amada – seu rosto estava frente ao meu; seus olhos pareciam ordenar que eu não me mexesse. – Ela vai morrer, Tom. Vai morrer agora e levará com ela o que você mais deseja: o beijo.

E assim foi. Aquele maldito virou-se e rasgou com as mãos a garganta de Allice. A vi arfar o próprio sangue e se debruçar sobre a poça vermelha.

A cena me tirou do transe e avancei. Cravei a espada nas costas do assassino. Vingança. Pelo menos isto eu teria.

Ele virou-se sorridente; o florete atravessando seu ventre. Finalmente percebi o que estava diante de mim. Aquela criatura gargalhou enquanto tirava a espada do corpo e pude ver suas imensas presas.

Ergueu-me do chão, grudando em meu pescoço.

- Patético. Mas vou te presentear com algo pior que a morte. Viva, garoto, para sempre, sentindo a perda da sua querida Allice.

Grudou as presas em minha garganta e pude sentir as veias ferverem. Parecia que fogo circulava pelo meu corpo e que minha alma estava sendo sugada para dentro da boca daquele monstro.

Quando minha vida se foi, me senti invadido por sombras. Meus olhos se abriram. Eu sugava o punho do assassino de Allice enquanto ele sorria. O gosto ferroso saciava uma fome sem limites.

- Chega! – disse ele puxando o braço. – Bem vindo às trevas.

Deixou-me ali, entre os cadáveres, e embrenhou-se na noite. A fome ainda era intensa e sorvi o que restou do sangue de Allice e de seus familiares.

Fui transformado numa besta assassina. Escondia-me durante o dia, caçava durante a noite. Por onde eu passava, deixava uma trilha de corpos e procurava aquele que me amaldiçoou. Jamais irei esquecer seu rosto. Por muito tempo, a única coisa que me fazia lembrar que eu era humano, era o coração dourado com que Allice me presenteou.

Finalmente encontrei um igual a mim, Dimitre. Ensinou a me alimentar sem matar e a descobrir muitos dos meus dons das trevas. Contou-me que, provavelmente, a doença dos pais de Allice era causada pela criatura que, depois de muito brincar, matou a todos.

Dimitre foi um grande mestre, porém não colaborou em nada na minha busca por vingança. Dizia que isto não devia ser a motivação nem para a mais vil das criaturas. Mas ainda hei de encontrar aquele monstro e cobrar a dívida de morte que tem comigo.

Interessante como algumas coisas são tão importantes em nossa vida. Depois de quase de dois séculos daquela maldita noite, estou aqui novamente escondido na penumbra, esperando ansiosamente por aquilo que nutre minha vida.

Uma mulher vem em minha direção.

Lembro-me de ter sorrido quando Dimitre me contou alguns termos usados por nós, os vampiros. O que mais me chamou atenção foi quando ele explicou como chamamos o ato de mordermos uma pessoa para nos alimentar.

Ela está próxima. Já está sob meu domínio.

- Não resista – digo saindo das sombras. – É apenas o Beijo. O Beijo de um vampiro.

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1 comentários:

Este é um ótimo texto seu, Denis, e percebi que você tem se embrenhado um pouco mais por este lado de suspense-terror light.
Muito legal.

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