Volmar Camargo Junior
Voltávamos para a sede de B.V. (uma das muitas cidades chamadas B.V. que há pelo Rio Grande). A escola onde lecionávamos ficava dentro da jurisdição do município, mas fazíamos, entre ida e volta, quase quarenta quilômetros de estrada de chão todos os dias.
Era chuva que Deus mandava, e parecia que São Pedro tinha aberto as cancelas do céu de deixado a rolar água. No micro-ônibus da prefeitura onde, por lei nem poderíamos viajar, estava todo o plantel de professores da Escola Municipal X (não é “dez”; é “xis” porque não vou dar o nome do santo). O carro era muito velho, mas ainda na ativa. Chamavam-no carinhosamente, em honra do estado dos faróis, “Fonforéco d’um zóio só”. E em dia de chuva, como era o caso, os passageiros precisavam esquivar-se das goteiras.
O motorista, vamos chamá-lo Gringo, — ou melhor, “Seu” Gringo — conhecia aquelas estradas de fazenda como ninguém. Já era adiantado da noite, e, segundo ele, havia grande chance de a chuva engrossar ainda mais. Por uma boca só, todo mundo votou contra quando o Seu Gringo disse que achava bom tomarmos um atalho.
Eu poderia apostar que Seu Gringo tinha um tanto de sangue germânico, porque não raro, o homem tinha uns acessos de “alemoíce”. Encasquetou na idéia, e meteu-se pelo caminho mais curto. É da sabedoria popular nos cinco continentes que atalhos não são aconselháveis. Hans Christian Andersen e os Irmãos Grimm estão aí para não me deixar mentir.
A estradinha, de fato, não era das piores. Quando já estávamos quase nos arrependendo de duvidar do “motora”, e ele, exibindo seu modo muito particular de mostrar a todos que ele é quem estava com a razão, justamente nesse momento aconteceu o que era visto. O “Fonforeco” apagou. Bem numa subida. E São Pedro, nada de dar arrego.
Era para ser apavorante, um grupo de dez pessoas no meio do nada (na verdade, estávamos, sim, no meio de uma fazenda, a Granja Santa Y.), a quilômetros de qualquer coisa, debaixo da maior chuva. Estava muito, muito escuro. O Gringo, por acaso, não tinha uma lanterna no ônibus. Foi então que alguém lembrou da única utilidade de um celular em uma estrada de colônia: a luz.
Confirmando a previsão do experiente italiano com sangue (e teimosia) de alemão, a chuva aumentou. Como já dito, era uma subida, que por aqui chamamos muito por “perambeira” ou “perau”. A torrente descia por aquela estrada barrenta feito uma cachoeira. O veículo começou a se mexer sozinho. Alguém falou, meio em tom de ordem, “vamo descer, gente”. E outro, decididamente imperativo, e gritando, disse “Devagar!”. Um a um, os professores e o motorista desceram a escadinha, enfiando em seguida o pé no barro.
Para quem não sabe como é uma estrada de fazenda, eis a descrição: em geral é de terra, ladeada por valetas fundas o suficiente para a água da chuva não “empoçar”. Algumas têm, em uma ou nas duas margens, um barranco. Aquele trecho tinha, pelo que ficamos muito gratos. O normal dessas vias é serem “cascalhadas” ou “empedradas” — dá no mesmo — mas em situações como aquela, não serviriam para nada nem cascalho, nem valeta. Ficou só o barro e o aguaceiro.
Descemos, e a água não nos arrastava por pouco. Conseguimos subir no tal barranco para, com a pouquíssima luz dos aparelhos de telefonia móvel, assistirmos ao espetáculo de camarote. Em instantes, o Fonforeco deslizou um pouco; depois mais um pouco; na terceira, deslanchou de vez em uma ré sem controle ladeira abaixo. Pendeu para a direita, escorregou e acabou com as rodas enfiadas na valeta, fazendo com que o corpo do carro pendesse para aquele lado até, finalmente, tombar. Breve silêncio. Era aterrador. Alguém soltou um “Puta Merda!” tão sentido que não deu pra agüentar. Caímos na gargalhada.
Foi aí que alguém teve a idéia de olhar para os celulares. Pois um deles estava mostrando, com costumava-se dizer, “um pauzinho de sinal”. Por acaso, era o meu. Disquei o número de alguém conhecido da prefeitura. A bateria do aparelho só deu tempo para dizer “Busca nós na subida da Granja Santa Y”. Como se vê, o lugar já tinha fama.
Pra encurtar a conversa: voltamos para B.V. na Kombi da Secretaria de Obras. Duas vezes tivemos que descer para empurrar. A chuva? Essa só parou uns três dias depois.
Depois dessa, o “Fonforeco d’um zóio só” finalmente foi aposentado.
(publicado no Recanto das Letras em 03/02/2008)
2 comentários:
Júnior, esses teus "causos" gaúchos são uma delícia de ler... me lembrei da minha primeira estadia no RS, numa fazenda em Vacaria... eu, toda paulistana e dondoca aos 8 anos, que só conhecia vaca e cavalo pela televisão, fui me meter a cavalgar... era uma égua malhada, chamava Rosita... tinha chovido uma semana, a fazenda toda era barro... bem, obviamente eu fiz questão de ir toda arrumada, com meu poncho novinho em folha... e, também obviamente, com toda a minha destreza hípica, devo ter irritado o raio da égua que empinou e me jogou direto numa poça de barro... que, pra completar, tinha perto um tufo de urtiga plantado... nesse dia eu descobri duas coisas ao mesmo tempo: éguas são bichos muito instáveis emocionalmente; urtiga é uma plantinha que faz sua mão arder quando você cai em cima dela...
muito legal teu texto! parabéns!
Um ótimo conto este seu, Junior!
Narrado duma maneira tão natural que é quase como se ouvíssemos o contador da história falando conosco.
Muito bom mesmo.
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