Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

domingo, 19 de maio de 2024

Morte súbita

 



Tia Lavínia estava com consulta marcada para o ortopedista, no Hospital Central. Como sempre, independente, não carecia da ajuda de ninguém para ir a uma simples consulta. Era assim que relatava: “uma simples consulta”. Com oitenta e dois anos e bem-disposta – na maioria das vezes –, ia sozinha ao supermercado, ao “gabinete” (salão de beleza), ao médico… Poucas vezes tive de acompanhá-la, somente para os exames mais complexos. No dia, estava relativamente fraca. Acordou tarde e reclamava de um sono “maldito”. Havia dormido mal durante a noite. Não era depressiva ou algo do tipo. Tomou o café lentamente, os remédios de praxe, conversando entre as poucas mordidas. A consulta de rotina estava marcada para as 14h, teria um tempo para se recompor. Retornou ao leito, para ler. Ficou deitada, alheia às chamadas da Neta, sua empregada e confidente. Pediu para ligar para mim, para saber se eu iria ao exame na quinta-feira, ou seja, três dias depois. Perguntei à Neta como ela estava, e Neta me disse que estava bem, mas molinha. Insisti para ir ao médico com ela, no dia fatídico. Não quis conversa, disse que eu deixasse de exagero besta. Bem, nessa idade, fala-se o que quer e faz-se o que quer, esse era o seu lema. A minha presença era uma muleta, para eventos em que não podia me dispensar. Na sala de espera se sentiu mal. Foi levada para uma sala reservada, para cuidados semi-intensivos. Demandou a presença de um médico plantonista. Teve, aí, a primeira parada cardíaca, sendo reanimada e levada de imediato à UTI. Lá, pelo que consta, teve mais duas paradas, sendo a última fatal. Ligaram do hospital justamente para o meu telefone, que constava em seu banco de dados: “Sr. Paulo, é do Hospital Central. Precisamos que o senhor venha o mais rápido possível, a Sra. Lavínia faleceu…”. Um peso cercou a minha cabeça e me fez sentar imediatamente. Eu estava no escritório, na minha sala, felizmente, senão seria mais um a cair e passar mal. O tempo rodou. Escutava a voz da atendente longe, vaga, como se estivesse num túnel sem fim. Desliguei e coloquei a cabeça na mesa, dois minutos, para pensar um pouco. Como assim, tia Lavínia havia morrido numa consulta corriqueira? Saiu de casa bem e foi ao hospital para morrer? Eu estava transtornado, porém, sem reação. Como advogado, já pensava em todas as possibilidades de ações que entraria contra o hospital, negligente. O hospital teria sido negligente, ou eu mesmo teria sido? A descrição do óbito, limpa e seca: mal súbito. Corri para receber o corpo e preparar os trâmites de saída. Que situação irreal, ilógica. Senti-me num mundo paralelo. E não tinha mais minha querida amiga para quem pedia ajuda nas horas difíceis.


Share




0 comentários:

Postar um comentário