“E viveram felizes para sempre” era o
final inevitável das histórias que a minha mãe me lia quando eu ainda era
demasiado pequena para poder ser eu a lê-las sozinha. Mas mesmo com essa idade,
ficava-me uma sensação de inacabado ao ouvi-la e não, não era exatamente por
querer que o ritual da leitura antes de dormir se prolongasse, podia sempre
pedinchar mais uma história, quase sempre com êxito.
Não era pois isso o que me levava,
inevitavelmente, a querer perguntar, “E depois?” Só deixei de o fazer porque
isso irritava de tal modo a minha mãe que qualquer esperança de adiar o momento
de ficar sozinha no escuro, a tentar dormir, ficava irremediavelmente perdida.
Na altura nunca percebi porquê e continuo
a não entender, sempre me pareceu uma pergunta perfeitamente lógica. A
Cinderela casa com o seu Príncipe e acaba tudo aí? Não acontece mais nada?
Todos os eventos das suas vidas – e eram sempre muitos e bastante envolventes –
tiveram lugar antes do “felizes para sempre”?
Acabei, pois, por associar o viver feliz
com o fim de qualquer história.
Bom, pelo menos na infância. Já mais
crescidinha, com acesso a outro tipo de livros e filmes, descobri uma outra
opção, a morte. Sim, os personagens ou morriam ou “viviam felizes” e nada mais
se ouvia falar deles. Ou seja, de certo modo, também morriam, pelo menos para
quem os acompanhara até aí.
Muito francamente, preferia a primeira,
pelo menos era um fim como deve ser, não me ficava aquela sensação de
incompleto da segunda variante. E para grande choque e espanto da família,
entrei numa de só ler e ver coisas trágicas. Tentaram desviar-me para outro
tipo de obras em que o que acontece a seguir fica no ar, mas isso ainda era
pior do que o “felizes”, achava que era batota por parte do autor.
A ideia de felizes igual a morte
entranhou-se-me de tal modo na alma que jurei por tudo o que me era mais
sagrado que nunca me aconteceria, iria, sim, viver em pleno até ao último
segundo, custasse o que custasse, fugindo a sete pés dessa tal felicidade que
punha fim a tudo. Não que quisesse ser infeliz, entenda-se, acho que ninguém
quer isso, pelo menos conscientemente. Queria, claro, ter momentos felizes, mas
em áreas restritas da minha vida, quase como uma luz que brilha cercada de
neblina e escuridão.
Mais uma vez, pareceu-me perfeitamente
lógico. O problema é que caí na asneira de expor esta minha teoria numa pequena
reunião de família. Pois, tinha obrigação de saber o que iria acontecer com
este nosso clã – sim, não é bem uma família, há clubes com muito menos membros
do que os inúmeros primos, tios e quejandos que se mantêm regularmente em
contacto.
E, claro, em menos de nada todos tinham
ouvido uma versão, mais ou menos fiável, das minhas ideias. Mas alguém me
entendeu? É claro que não! Choveram propostas de livros de autoajuda, terapias,
tudo e mais alguma coisa que me pudesse ajudar, na opinião de quem o propunha,
a sair do fosso em que obviamente me encontrava.
A situação complicou-se ainda mais quando
uma prima, não sei em que grau, são tantas que é difícil fixar tudo isso,
formada em psicologia decidiu analisar a fundo a minha vida, transmitindo,
claro, de imediato as suas conclusões a quem as quisesse ouvir. Foi o fim do
mundo!
Confesso que vistos de fora, entre
relações quebradas e trocas de emprego, os vários eventos da minha ainda curta
vida mais pareciam o percurso de alguém a caminho da autodestruição. E. claro,
foi essa a conclusão a que todos chegaram. Ainda se tivessem guardado as suas
opiniões para si... Mas não, tornou-se quase o “passatempo nacional” tentar
levar-me a mudar o rumo da minha vida.
E quando não o conseguiam, bom, entravam
logo no insultozinho, bom, às vezes não tão “inho” como isso. Chamaram-me
rainha do drama, sabotadora da vida, cata-vento que tem uma coisa logo quer
outra, e isto apenas para citar os mais “suaves”, digamos. Só que nada disto é
verdade, quero o que sempre quis desde bem pequena, ou seja, quero um depois
que dure até à morte, não quero ter a minha vida abafada pelo algodão xaroposo
e asfixiante da felicidade total.
De certo modo até tinham razão ao
chamarem-me “sabotadora da vida”. É que quando as coisas começavam a andar bem
demais, quer num namoro quer num emprego, e me era difícil distinguir um dia do
outro porque tudo decorria sobre rodas, bom, mal dava por ela criava, de
imediato, um empecilho que descarrilasse tudo, levando-me a ter, de novo, uma
vida cheia de eventos.
No fundo, a minha vida era uma paráfrase
da célebre frase, “falem mal, mas falem de mim”, mas na versão, “quero é viver,
venham os problemas”. Repito, nada de grave, só aquelas pequeninas coisas que,
na minha opinião, dão sal à vida.
Mesmo assim, para bem da harmonia familiar
e para evitar os inúmeros telefonemas e mails que recebia sobre o assunto, e
que não podia ignorar, a menos que quisesse ter o clã todo à perna, decidi tentar. E tentei, só eu sei como tentei
acreditar que eles é que tinham razão, que eu era apenas uma idiota com ideias
estrambólicas e que a felicidade, a tal do “felizes para sempre” é extremamente
desejável e enriquecedora, ou seja, algo a que devemos aspirar.
Moderei, pois, a minha fúria de mudança e
mantive o mesmo emprego algum tempo, apesar de ser totalmente satisfatório e me
deixar dormente de satisfação, leia-se, de felicidade. Mas a relação que então
encetei com o Pedro ajudou bastante, com os seus contínuos altos e baixos que,
juro, não era por minha culpa, bom, pelo menos não totalmente.
É que tínhamos feitios suficientemente
diferentes para haver choques, mas parecidos o bastante para mantermos a
relação. Pedro parecia adorar uma boa discussão “para desanuviar o ar”, como
dizia, e eu não me deixava ficar, ia logo à luta, o que parecia resultar
bastante bem para ambos. Bom, pelo menos a nossa vida a dois não era monótona,
muito pelo contrário.
O passo seguinte parecia ser o casamento
e, aqui para nós, após três anos juntos, dois deles na mesma casa, todos
pareciam pensar que era só uma questão de quando e não de se. E por todos,
refiro-me, claro, à minha família, mas também à dele, sobretudo a mãe que já
via um futuro cheio de netinhos.
Confesso que hesitei, vieram-me à mente
todas aquelas histórias da minha infância, todos os filmes Lifetime que vira
para fazer companhia à minha mãe e irmãs. Sabem quais são, rapaz encontra
rapariga, odeiam-se e / ou têm todo o tipo de problemas, mas depois caem em si
e casam-se – fim da história, ficando subentendo o “felizes para sempre”,
claro.
É que com a nossa relação tempestuosa
havia o receio, bem lógico, de que, uma vez casados, tudo isso desaparecesse e
a vida passasse a ser um mar de rosas... pois, e ainda me acusam de não ser
romântica! No mínimo, havia o perigo muito real de tudo se atenuar, vira-o em
vários casais da família e de amigos que, após o casamento, tinham entrado numa
rotina sem sobressaltos de maior, em absoluto contraste com a sua relação
anterior. Pior ainda, afirmavam ser felizes assim.
Não sei se por inércia se por estar farta
de tantas indiretas – quando não eram mais do que diretas – acabei por
concordar em dar o nó, estipulando, como única condição, nada ter a ver com o
dia em si. No fundo, foi um modo de fugir ao inevitável, é que tinha a certeza
de que, no entusiasmo de me verem mudar de ideias, todo o clã deitaria mãos à
obra e as minhas opiniões pouco ou nada contariam. Assim, o meu papel ficava
reduzido, à partida, a aparecer no momento e local escolhidos e no vestido
certo, digamos.
O que me leva ao “drama” desta manhã, de
recuso a responsabilidade, pelo menos total. A culpa é toda de uma das minhas
tias, mais uma vez não sei bem de que género, é que aplicávamos o termo a
vários adultos de certa idade e que suspeito que eram, de facto primos. Mas
adiante.
A tia em questão vivia bastante longe, por
isso raras vezes a víamos, até porque odiava viajar. Mas nunca faltava a
casamentos, batizados e, claro, funerais, de que não houvera nenhum há já
bastante tempo. Tinha-me, pois, quase esquecido dela, era apenas mais um número
entre os muitos convidados.
Só que foi tudo menos isso.
Mal chegou, na véspera bem cedo, para
estar fresca para o grande dia – palavras dela – começou imediatamente a querer
saber da vida de todos, leia-se, das tragédias e desgraças que poderiam ter
ocorrido sem ela saber. E tudo muito bem explicadinho, não era pessoa para se
contentar com “Fulano divorciou-se de Sicrana”, nem pensar, com ela só
relatórios completos.
Dissecada toda a família, o que levou uma
boa parte do dia, sentou-se ao meu lado para o que seria o meu último jantar de
solteira. É que por insistência da família voltara para casa uma semana antes,
para me manter afastada de Pedro e, segundo o que ouvi dizer, “manter o
mistério entre os noivos”...
Conhecendo-a como a conheci, preparei-me
mentalmente para uma dissecação total do meu emprego e, sobretudo, da minha
vida amorosa. Qual não foi, pois, o meu espanto quando se limitou a dizer-me,
com um sorriso de orelha a orelha que deixava bem à vista a caríssima dentadura
demasiado branca para parecer natural:
- Sabes, conheci o teu Pedro e gostei
muito dele. Tenho a certeza de que vão ser felizes para sempre!
E admiram-se por eu ter rompido o noivado?
Luísa Lopes
Imagem: QuickWrite
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