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quinta-feira, 9 de maio de 2024

E viveram felizes...


 

“E viveram felizes para sempre” era o final inevitável das histórias que a minha mãe me lia quando eu ainda era demasiado pequena para poder ser eu a lê-las sozinha. Mas mesmo com essa idade, ficava-me uma sensação de inacabado ao ouvi-la e não, não era exatamente por querer que o ritual da leitura antes de dormir se prolongasse, podia sempre pedinchar mais uma história, quase sempre com êxito.

Não era pois isso o que me levava, inevitavelmente, a querer perguntar, “E depois?” Só deixei de o fazer porque isso irritava de tal modo a minha mãe que qualquer esperança de adiar o momento de ficar sozinha no escuro, a tentar dormir, ficava irremediavelmente perdida.

Na altura nunca percebi porquê e continuo a não entender, sempre me pareceu uma pergunta perfeitamente lógica. A Cinderela casa com o seu Príncipe e acaba tudo aí? Não acontece mais nada? Todos os eventos das suas vidas – e eram sempre muitos e bastante envolventes – tiveram lugar antes do “felizes para sempre”?

Acabei, pois, por associar o viver feliz com o fim de qualquer história.

Bom, pelo menos na infância. Já mais crescidinha, com acesso a outro tipo de livros e filmes, descobri uma outra opção, a morte. Sim, os personagens ou morriam ou “viviam felizes” e nada mais se ouvia falar deles. Ou seja, de certo modo, também morriam, pelo menos para quem os acompanhara até aí.

Muito francamente, preferia a primeira, pelo menos era um fim como deve ser, não me ficava aquela sensação de incompleto da segunda variante. E para grande choque e espanto da família, entrei numa de só ler e ver coisas trágicas. Tentaram desviar-me para outro tipo de obras em que o que acontece a seguir fica no ar, mas isso ainda era pior do que o “felizes”, achava que era batota por parte do autor.

A ideia de felizes igual a morte entranhou-se-me de tal modo na alma que jurei por tudo o que me era mais sagrado que nunca me aconteceria, iria, sim, viver em pleno até ao último segundo, custasse o que custasse, fugindo a sete pés dessa tal felicidade que punha fim a tudo. Não que quisesse ser infeliz, entenda-se, acho que ninguém quer isso, pelo menos conscientemente. Queria, claro, ter momentos felizes, mas em áreas restritas da minha vida, quase como uma luz que brilha cercada de neblina e escuridão.

Mais uma vez, pareceu-me perfeitamente lógico. O problema é que caí na asneira de expor esta minha teoria numa pequena reunião de família. Pois, tinha obrigação de saber o que iria acontecer com este nosso clã – sim, não é bem uma família, há clubes com muito menos membros do que os inúmeros primos, tios e quejandos que se mantêm regularmente em contacto.

E, claro, em menos de nada todos tinham ouvido uma versão, mais ou menos fiável, das minhas ideias. Mas alguém me entendeu? É claro que não! Choveram propostas de livros de autoajuda, terapias, tudo e mais alguma coisa que me pudesse ajudar, na opinião de quem o propunha, a sair do fosso em que obviamente me encontrava.

A situação complicou-se ainda mais quando uma prima, não sei em que grau, são tantas que é difícil fixar tudo isso, formada em psicologia decidiu analisar a fundo a minha vida, transmitindo, claro, de imediato as suas conclusões a quem as quisesse ouvir. Foi o fim do mundo!

Confesso que vistos de fora, entre relações quebradas e trocas de emprego, os vários eventos da minha ainda curta vida mais pareciam o percurso de alguém a caminho da autodestruição. E. claro, foi essa a conclusão a que todos chegaram. Ainda se tivessem guardado as suas opiniões para si... Mas não, tornou-se quase o “passatempo nacional” tentar levar-me a mudar o rumo da minha vida.

E quando não o conseguiam, bom, entravam logo no insultozinho, bom, às vezes não tão “inho” como isso. Chamaram-me rainha do drama, sabotadora da vida, cata-vento que tem uma coisa logo quer outra, e isto apenas para citar os mais “suaves”, digamos. Só que nada disto é verdade, quero o que sempre quis desde bem pequena, ou seja, quero um depois que dure até à morte, não quero ter a minha vida abafada pelo algodão xaroposo e asfixiante da felicidade total.

De certo modo até tinham razão ao chamarem-me “sabotadora da vida”. É que quando as coisas começavam a andar bem demais, quer num namoro quer num emprego, e me era difícil distinguir um dia do outro porque tudo decorria sobre rodas, bom, mal dava por ela criava, de imediato, um empecilho que descarrilasse tudo, levando-me a ter, de novo, uma vida cheia de eventos.

No fundo, a minha vida era uma paráfrase da célebre frase, “falem mal, mas falem de mim”, mas na versão, “quero é viver, venham os problemas”. Repito, nada de grave, só aquelas pequeninas coisas que, na minha opinião, dão sal à vida.

Mesmo assim, para bem da harmonia familiar e para evitar os inúmeros telefonemas e mails que recebia sobre o assunto, e que não podia ignorar, a menos que quisesse ter o clã todo à perna,  decidi tentar. E tentei, só eu sei como tentei acreditar que eles é que tinham razão, que eu era apenas uma idiota com ideias estrambólicas e que a felicidade, a tal do “felizes para sempre” é extremamente desejável e enriquecedora, ou seja, algo a que devemos aspirar.

Moderei, pois, a minha fúria de mudança e mantive o mesmo emprego algum tempo, apesar de ser totalmente satisfatório e me deixar dormente de satisfação, leia-se, de felicidade. Mas a relação que então encetei com o Pedro ajudou bastante, com os seus contínuos altos e baixos que, juro, não era por minha culpa, bom, pelo menos não totalmente.

É que tínhamos feitios suficientemente diferentes para haver choques, mas parecidos o bastante para mantermos a relação. Pedro parecia adorar uma boa discussão “para desanuviar o ar”, como dizia, e eu não me deixava ficar, ia logo à luta, o que parecia resultar bastante bem para ambos. Bom, pelo menos a nossa vida a dois não era monótona, muito pelo contrário.

O passo seguinte parecia ser o casamento e, aqui para nós, após três anos juntos, dois deles na mesma casa, todos pareciam pensar que era só uma questão de quando e não de se. E por todos, refiro-me, claro, à minha família, mas também à dele, sobretudo a mãe que já via um futuro cheio de netinhos.

Confesso que hesitei, vieram-me à mente todas aquelas histórias da minha infância, todos os filmes Lifetime que vira para fazer companhia à minha mãe e irmãs. Sabem quais são, rapaz encontra rapariga, odeiam-se e / ou têm todo o tipo de problemas, mas depois caem em si e casam-se – fim da história, ficando subentendo o “felizes para sempre”, claro.

É que com a nossa relação tempestuosa havia o receio, bem lógico, de que, uma vez casados, tudo isso desaparecesse e a vida passasse a ser um mar de rosas... pois, e ainda me acusam de não ser romântica! No mínimo, havia o perigo muito real de tudo se atenuar, vira-o em vários casais da família e de amigos que, após o casamento, tinham entrado numa rotina sem sobressaltos de maior, em absoluto contraste com a sua relação anterior. Pior ainda, afirmavam ser felizes assim.

Não sei se por inércia se por estar farta de tantas indiretas – quando não eram mais do que diretas – acabei por concordar em dar o nó, estipulando, como única condição, nada ter a ver com o dia em si. No fundo, foi um modo de fugir ao inevitável, é que tinha a certeza de que, no entusiasmo de me verem mudar de ideias, todo o clã deitaria mãos à obra e as minhas opiniões pouco ou nada contariam. Assim, o meu papel ficava reduzido, à partida, a aparecer no momento e local escolhidos e no vestido certo, digamos.

O que me leva ao “drama” desta manhã, de recuso a responsabilidade, pelo menos total. A culpa é toda de uma das minhas tias, mais uma vez não sei bem de que género, é que aplicávamos o termo a vários adultos de certa idade e que suspeito que eram, de facto primos. Mas adiante.

A tia em questão vivia bastante longe, por isso raras vezes a víamos, até porque odiava viajar. Mas nunca faltava a casamentos, batizados e, claro, funerais, de que não houvera nenhum há já bastante tempo. Tinha-me, pois, quase esquecido dela, era apenas mais um número entre os muitos convidados.

Só que foi tudo menos isso.

Mal chegou, na véspera bem cedo, para estar fresca para o grande dia – palavras dela – começou imediatamente a querer saber da vida de todos, leia-se, das tragédias e desgraças que poderiam ter ocorrido sem ela saber. E tudo muito bem explicadinho, não era pessoa para se contentar com “Fulano divorciou-se de Sicrana”, nem pensar, com ela só relatórios completos.

Dissecada toda a família, o que levou uma boa parte do dia, sentou-se ao meu lado para o que seria o meu último jantar de solteira. É que por insistência da família voltara para casa uma semana antes, para me manter afastada de Pedro e, segundo o que ouvi dizer, “manter o mistério entre os noivos”...

Conhecendo-a como a conheci, preparei-me mentalmente para uma dissecação total do meu emprego e, sobretudo, da minha vida amorosa. Qual não foi, pois, o meu espanto quando se limitou a dizer-me, com um sorriso de orelha a orelha que deixava bem à vista a caríssima dentadura demasiado branca para parecer natural:

- Sabes, conheci o teu Pedro e gostei muito dele. Tenho a certeza de que vão ser felizes para sempre!

E admiram-se por eu ter rompido o noivado?


Luísa Lopes

Imagem: QuickWrite

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