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terça-feira, 9 de abril de 2024

Jéssica


 

Foi com um suspiro que, infelizmente, já se tornara habitual que Jéssica desligou o despertador e afastou os lençóis. Custava-lhe cada vez mais levantar-se, por muito que tivesse dormido. E, muito francamente, não tinha razões de queixa nessa área, muito pelo contrário. Podia-se até dizer que nunca dormira tanto, mal se deitava, pumba, adormecia logo para só acordar com o estridor do alarme, que fazia questão de usar também aos fins de semana ou arriscava-se a passá-los totalmente a dormir.

Nem sequer era o facto de morrer de tédio no empregozito que arranjara e que mal dava para as suas despesas básicas. Não, o seu tremendo cansaço ia bem mais fundo, abrangia todas as áreas da sua vida, se é que se podia chamar vida ao que tinha: acordar, ir trabalhar, voltar a casa, comer, dormir, repetir, sendo a única diferença o trabalho dar lugar a pasmaceira total aos fins de semana e feriados.

Sim, havia uma ou outra saída casual com amigos, mas por mera rotina, já nada tinham a dizer uns aos outros e nunca acontecia nada de novo que pudesse dar origem a alguma excitação, por muito artificial que fosse.

Pior ainda, não antevia qualquer alteração profunda no resto da sua vida, sabia que acabaria por fazer como os outros, casando-se com um dos elementos solteiros do grupo, não importava qual, para passarem a aborrecer-se a dois. Enfim, uma mera repetição da vida dos pais e de muitos outros por ali, empregos sem futuro, falta de dinheiro crónica e, acima de tudo, falta de entusiasmo pela vida.

Estranhamente, foi precisamente nessa sexta-feira que teve um vislumbre de mudança. Foi, como sempre, ao bar do bairro com o pessoal do costume, apesar de nem gostar de beber. Mas fazia parte da rotina, por isso lá se dispôs a beber uns refrigerantes de fraca qualidade bem mais caros do que os bons do supermercado. Em tempos chegara a fazer as contas a quanto pouparia por mês sem esta e outras saídas “por obrigação”, mas desistira a meio, era demasiado deprimente.

Pois bem, nessa noite havia uma novidade, uma presença nova no grupo. Bom, não propriamente nova, a Carla crescera com eles mas decidira tirar um curso técnico à noite e acabara por arranjar um bom emprego fora dali. Voltara por uns dias para tratar de levar a mãe idosa consigo, uma doença debilitante forçava-a a abandonar o seu lar de muitos anos mas pouco ou nada podia fazer a esse respeito.

A noite já ia avançada quando Jéssica se viu a sós com Carla durante alguns minutos. A conversa derivou, sem que soubesse como, para o curso que permitira à sua ex-colega mudar radicalmente de vida. E o bichinho ficou...

Nos dias seguintes deu consigo a pensar no caso, a tal ponto que foi até procurar informações sobre o que estava disponível, horários, etc. E Carla tinha razão, mesmo com o seu magro ordenado era perfeitamente viável, sobretudo se deixasse as tais saídas entediantes e dedicasse esse tempo e dinheiro aos estudos.

Mas o grande motivo da sua hesitação estava no temor da reação dos outros. Ainda se lembrava do que tinham dito – ela também, claro, quando Carla os largara para “melhorar a vida”, como então dissera. E tinham, de facto, perdido o contacto com ela, aquela noite no bar fora a única exceção em muitos anos.

Por outro lado, a sua vida melhorara de facto, não só financeiramente mas também em termos de qualidade de vida. A fazer fé no que lhe contara, tinha agora amigos a sério e não meros conhecidos que se mantinham em grupo porque tinham crescido juntos. E com uma formação adequada poderia finalmente sair dali, como sempre ansiara fazer, mas de um modo vago e sem esperança.

Após semanas a ruminar, decidiu inscrever-se num curso de apoiante de idosos, é que de acordo com o folheto havia muita procura sobretudo nas grandes cidades e, com a fraca oferta, os salários eram bons.

Os meses que se seguiram foram dolorosos. Nunca fora grande estudante e, para além da parte teórica, o curso tinha uma forte componente prática que, para pessoas como ela, do curso noturno, era dada nos fins de semana. Junte-se a isso a reação mais do que esperada dos seus supostos amigos e o isolamento em que passou a viver por não ter tempo para conviver.

Mas não só, havia ainda uma vozinha interior que nunca se calava e que lhe apontava o disparate de aprender algo com a sua idade, devia era pensar em casar e assentar, quem é que ela pensava que era para querer uma vida diferente da que lhe calhara em sorte?

Pode-se mesmo dizer que de todos os fatores com que teve de lutar, este foi, de longe, o pior, pondo Jéssica à beira de desistir inúmeras vezes, sobretudo quando sabia que o grupo se estava a divertir enquanto ela trabalhava. Nesses momentos esquecia até o imenso tédio que essa suposta diversão sempre lhe causara e o facto de nada ter em comum com os amigos exceto o hábito de estarem juntos.

Mas lá foi labutando até que um belo dia conseguiu o almejado diploma. E ainda antes de se formar oficialmente já tinha uma colocação, numa cidade distante, para tomar conta de uma idosa acamada com quem viveria.

E lá partiu, sem se despedir de ninguém, tinha a certeza de que não notariam a sua falta, tal como não tinham sentido a de Carla tantos anos antes.

Luísa Lopes

Imagem feita com QuickWrite


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