Foi com um suspiro que, infelizmente, já
se tornara habitual que Jéssica desligou o despertador e afastou os lençóis.
Custava-lhe cada vez mais levantar-se, por muito que tivesse dormido. E, muito
francamente, não tinha razões de queixa nessa área, muito pelo contrário.
Podia-se até dizer que nunca dormira tanto, mal se deitava, pumba, adormecia
logo para só acordar com o estridor do alarme, que fazia questão de usar também
aos fins de semana ou arriscava-se a passá-los totalmente a dormir.
Nem sequer era o facto de morrer de tédio
no empregozito que arranjara e que mal dava para as suas despesas básicas. Não,
o seu tremendo cansaço ia bem mais fundo, abrangia todas as áreas da sua vida,
se é que se podia chamar vida ao que tinha: acordar, ir trabalhar, voltar a
casa, comer, dormir, repetir, sendo a única diferença o trabalho dar lugar a
pasmaceira total aos fins de semana e feriados.
Sim, havia uma ou outra saída casual com
amigos, mas por mera rotina, já nada tinham a dizer uns aos outros e nunca
acontecia nada de novo que pudesse dar origem a alguma excitação, por muito
artificial que fosse.
Pior ainda, não antevia qualquer alteração
profunda no resto da sua vida, sabia que acabaria por fazer como os outros,
casando-se com um dos elementos solteiros do grupo, não importava qual, para
passarem a aborrecer-se a dois. Enfim, uma mera repetição da vida dos pais e de
muitos outros por ali, empregos sem futuro, falta de dinheiro crónica e, acima
de tudo, falta de entusiasmo pela vida.
Estranhamente, foi precisamente nessa
sexta-feira que teve um vislumbre de mudança. Foi, como sempre, ao bar do
bairro com o pessoal do costume, apesar de nem gostar de beber. Mas fazia parte
da rotina, por isso lá se dispôs a beber uns refrigerantes de fraca qualidade
bem mais caros do que os bons do supermercado. Em tempos chegara a fazer as
contas a quanto pouparia por mês sem esta e outras saídas “por obrigação”, mas
desistira a meio, era demasiado deprimente.
Pois bem, nessa noite havia uma novidade,
uma presença nova no grupo. Bom, não propriamente nova, a Carla crescera com
eles mas decidira tirar um curso técnico à noite e acabara por arranjar um bom
emprego fora dali. Voltara por uns dias para tratar de levar a mãe idosa
consigo, uma doença debilitante forçava-a a abandonar o seu lar de muitos anos
mas pouco ou nada podia fazer a esse respeito.
A noite já ia avançada quando Jéssica se
viu a sós com Carla durante alguns minutos. A conversa derivou, sem que
soubesse como, para o curso que permitira à sua ex-colega mudar radicalmente de
vida. E o bichinho ficou...
Nos dias seguintes deu consigo a pensar no
caso, a tal ponto que foi até procurar informações sobre o que estava
disponível, horários, etc. E Carla tinha razão, mesmo com o seu magro ordenado
era perfeitamente viável, sobretudo se deixasse as tais saídas entediantes e
dedicasse esse tempo e dinheiro aos estudos.
Mas o grande motivo da sua hesitação
estava no temor da reação dos outros. Ainda se lembrava do que tinham dito –
ela também, claro, quando Carla os largara para “melhorar a vida”, como então
dissera. E tinham, de facto, perdido o contacto com ela, aquela noite no bar
fora a única exceção em muitos anos.
Por outro lado, a sua vida melhorara de
facto, não só financeiramente mas também em termos de qualidade de vida. A
fazer fé no que lhe contara, tinha agora amigos a sério e não meros conhecidos
que se mantinham em grupo porque tinham crescido juntos. E com uma formação
adequada poderia finalmente sair dali, como sempre ansiara fazer, mas de um
modo vago e sem esperança.
Após semanas a ruminar, decidiu
inscrever-se num curso de apoiante de idosos, é que de acordo com o folheto
havia muita procura sobretudo nas grandes cidades e, com a fraca oferta, os
salários eram bons.
Os meses que se seguiram foram dolorosos.
Nunca fora grande estudante e, para além da parte teórica, o curso tinha uma
forte componente prática que, para pessoas como ela, do curso noturno, era dada
nos fins de semana. Junte-se a isso a reação mais do que esperada dos seus
supostos amigos e o isolamento em que passou a viver por não ter tempo para
conviver.
Mas não só, havia ainda uma vozinha
interior que nunca se calava e que lhe apontava o disparate de aprender algo
com a sua idade, devia era pensar em casar e assentar, quem é que ela pensava
que era para querer uma vida diferente da que lhe calhara em sorte?
Pode-se mesmo dizer que de todos os
fatores com que teve de lutar, este foi, de longe, o pior, pondo Jéssica à
beira de desistir inúmeras vezes, sobretudo quando sabia que o grupo se estava
a divertir enquanto ela trabalhava. Nesses momentos esquecia até o imenso tédio
que essa suposta diversão sempre lhe causara e o facto de nada ter em comum com
os amigos exceto o hábito de estarem juntos.
Mas lá foi labutando até que um belo dia
conseguiu o almejado diploma. E ainda antes de se formar oficialmente já tinha
uma colocação, numa cidade distante, para tomar conta de uma idosa acamada com
quem viveria.
E lá partiu, sem se despedir de ninguém,
tinha a certeza de que não notariam a sua falta, tal como não tinham sentido a
de Carla tantos anos antes.
Luísa Lopes
Imagem feita com QuickWrite
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