O som do telefone fixo sobressaltou Artur.
Há meses, ou até anos, que não o usava, mantinha-o até mais por inércia do que
por necessidade e também porque estava incluído no seu contrato de Internet.
Com a demora em chegar à entrada do apartamento,
onde o mantinha a um canto, receou que quem estivesse do outro lado acabasse
por desistir e desligar. Mas não, devia ser realmente importante porque teve
tempo mais do que suficiente mesmo com a lentidão que a bengala que usava desde
o seu acidente há dois meses lhe causava.
E foi com alguma excitação contida que
levantou o telefone da sua base e pronunciou o seu usual “Alô?” Após um
silêncio um tanto prolongado, que o fez quase desligar, ouviu, finalmente
dizer:
“Quem fala?”
“Com quem quer falar?
“Com o Zezinho, claro.”
“Desculpe, aqui não vive ninguém com esse
nome.”
E irritado por se ter deslocado em vão,
Jorge desligou abruptamente, dando-lhe uma certa satisfação o ruído seco que o
aparelho fez ao ser encaixado no seu lugar, algo que sempre lhe fizera falta
com os telemóveis, apesar de não chegar aos calcanhares dos telefone de
outrora.
Mas de volta ao seu escritório / salinha
deu por si a pensar naquela chamada. Seria realmente um número errado? É que na
realidade o seu nome completo era José Artur... Mas na adolescência exigira que
lhe começassem a chamar só Artur, achava José, ou pior ainda, Zé, demasiado
vulgar e popularucho.
A família não respeitara essa mudança, mas
com a ida para a universidade e a entrada na vida adulta passara a ser muito
simplesmente Artur ou o Sr. Silva. Esquecera, até, de certo modo que nem sempre
fora assim. Bom, até à maldita chamada...
Não reconhecera a voz, o que até nem era
de admirar, nunca fora muito bom a fazê-lo. Irritava-se, até, solenemente com
quem achava que bastava dizer “olá” e pronto, ele teria logo de saber quem era.
Felizmente o telemóvel viera resolver a maior parte destes problemas, com o seu
identificador de chamadas.
Mas... Zezinho? Mesmo em miúdo poucos lhe
chamavam assim, só a família e alguns colegas de escola de quem era amigo na
época. E a verdade é que, por motivos que nem ele próprio sabia, fizera questão
de manter o mesmo número desde que passara a ter o seu próprio telefone.
Teria sido alguém do seu passado? As
hipóteses eram realmente muito reduzidas.
Da família próxima, restava-lhe apenas o
pai e uma das irmãs. Mas era duvidoso que fosse um deles, uma vez que não se
falavam há anos.
Cortara relações com o pai quando este,
tendo ficado subitamente desempregado por ter provocado um acidente na fábrica
onde trabalhava, deixara de lhe poder pagar os estudos, ou antes, todas as
despesas da sua vida de estudante. Culpava-o por ter sido forçado a arranjar um
emprego para custear o quarto, alimentação, transportes e tudo o mais,
cortando-lhe, assim, todo o tempo livre para qualquer tipo de diversão.
Mesmo quando veio a saber que havia outras
razões para o acidente, de tal modo que o pai recebera, até, uma indemnização
pelo despedimento sem justa causa, tinha passado demasiado tempo e não saberia como
retomar uma relação que, diga-se de passagem, nunca fora grande coisa.
Quanto à irmã, bom, sendo cinco anos mais
nova, pouco convivera a sério com ela até partir para a universidade. Na altura
achava-a até um pouco chatinha, sempre a querer estar de volta dele quando ele
tinha bem mais que fazer do que aturar uma criancinha.
Aquando do seu casamento tinha havido uma
tentativa de aproximação, mas a realidade é que viviam em mundos muito
diferentes. Ela casara ainda antes de acabar o liceu com um colega que se
tornara taxista e ele tentava singrar no mundo empresarial. Acabaram por se
limitar à troca de emails de Natal e de parabéns, mas também esses foram
esmorecendo e há já uns dois ou três anos que nada sabia dela.
Era, pois, muito pouco provável que o
“Zezinho” viesse de um deles.
Restavam, pois, os amigos de infância.
Bom, amigos, é como quem diz. Tinham-se habituado a conviver desde miúdos por
serem os únicos da mesma idade naquela rua e mantiveram o seu relacionamento
durante a primária e o liceu apenas porque tinham sempre sido postos na mesma
turma. Não sabia bem como fora para o Manuel e para o Jorge, mas, no que lhe
dizia respeito, fizera-o muito simplesmente porque achara que criar novas
amizades daria muito trabalho e, como tencionava partir daquela terriola mal
concluísse o liceu, o mais provável era não valer realmente a pena.
E assim fora. Inicialmente, ainda se viam
quando ia a casa nas férias. Os amigos não tinham prosseguido os estudos,
preferindo algo mais prático e que lhes rendesse um salário mais rapidamente. E
descobriram rapidamente que pouco tinham agora em comum. As saídas em grupo
passaram a ser quase uma obrigação, bom, no seu caso sempre era um escape à
vida familiar, que acabara quando cortara relações com o pai, nunca mais tendo
voltado à terra.
Mas, enfim, havia sempre a hipótese muito
remota de um deles ter tentado ligar-lhe, sabe-se lá porquê, arriscando usar o
seu antigo número. Mas por mais voltas que desse à cabeça, não conseguia
imaginar nenhum cenário em que isso acontecesse.
Ainda pensou em verificar o número de onde
partira a chamada, mas o seu telefone fixo era mesmo muito antigo e não tinha
essas modernices.
Para quem o conhecesse profissionalmente,
esta sua obsessão com o que fora, quase de certeza, um número errado poderia
parecer estranha. Mas como a sua ex-mulher nunca se cansara de lhe dizer, a sua
personalidade tinha uma forte componente cismática, como se costumava dizer, e
odiava ver-se perante questões que não conseguia resolver.
E aqui estava claramente uma delas.
Maldita chamada!
Estava decidido, iria imediatamente
eliminar do seu nome o telefone fixo e o respetivo número. Mas... e se não
tivesse sido engano e a pessoa tentasse novamente?
Luísa Lopes
Imagem criada com QuickWrite
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